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domingo, 24 de novembro de 2013

Notas de Roda-pé

 
O discurso de André


Ao concluir a Missa de encerramento da JMJ de Madrid, dirigindo-se aos jovens portugueses presentes, e por eles aos demais jovens católicos lusos, o Papa disse-lhes: «Foi para este momento da história, cheio de grandes desafios e oportunidades, que o Senhor vos mandou: para que, graças à vossa fé, continue a ressoar a Boa Nova de Cristo por toda a terra».
E os nossos bispos reunidos em Fátima escreveram no passado dia 10 de Novembro aos nossos jovens, dizendo-lhes: «a Pastoral Juvenil não é somente encontros, festas e jornadas mundiais. O programa que esses acontecimentos suscitam, deveis vivê-lo no dia a dia.»
Não. Pois não, a pastoral não é só festa. Para verificação do caminho a seguir, o Papa propõe o seguinte programa para os próximos anos: firmar a fé no Senhor, alegrar-se no Senhor, fazer novos discípulos para o Senhor. É um programa exigente que temo poucos leiam apesar de tantas postagens em blogues e facebookes.
Vivemos de fragmentos, num tempo de estilhaços. Mas é aqui que vivemos e é para esta realidade que, qual fermento, somos enviados, a fim de que também nos fragmentos e nos estilhaços ressoe a Boa Nova da salvação de Jesus. É um tempo de instabilidade, de itinerários pessoais e institucionais confusos. (Será que é por aqui, perguntamo-nos; ou nem é por aqui nem por acolá e o melhor é ficarmos sentados?) Num tempo com estas coordenadas quem mais sofre é a interioridade, a religião e a cultura, as perspectivas comunitárias, as tradições, as instituições. Por que hei-de ter fé – e sobretudo vivê-la em comunidade –, se o clima é propenso ao anonimato? Porque hei-de comprometer-me com algo se os dias se regem pelo individualismo, pelo safe-se quem puder e pelo irei quando me sentir bem? Por que hei-de enraizar-me em algo se já não há senhores nem leis universais? Por que se há-de revisitar a fonte onde os nossos avós beberam se a publicidade oferece água com sabores exóticos? Por quê apostar num grande desígnio que a todos toque se o mais comum é desconfiar de quem proponha valores perenes?
Eis a razão por que tanto me surpreendeu o discurso de mestre André.
Foi de todo inesperado. Porque é um jovem, porque não estamos habituados a crer que os actores do futebol (nacional) pensem. Ou se pensam, pensamos que apenas pensam com as pontas dos pés!
André foi na última época desportiva o treinador principal da equipa sénior do Futebol Clube do Porto. Ganhou quatro em cinco troféus possíveis. Para os fiéis indefectíveis tornou-se um deus. Quando abruptamente abandonou o clube porque noutro lugar lhe pagavam melhor converteram-no em diabo. (Claro está que a maioria lamentou não estar na cadeira dele! Porém, ele não é nem deus nem diabo!)
Meio ano depois o clube homenageou-o, e ele, com classe, leu um pequeno discurso de três minutos que me tocou, porque, afinal, há quem no mundo do futebol pense com algo mais que as chuteiras. Não agarrei o discurso todo, mas aqui vai o que a mim mais tocou: «Cheguei à conclusão que o portismo esteve sempre presente na minha vida. É um sentimento de emoção, revolta, desejo, ambição. Sentido comum, sentido de união, empatia e reconhecimento. 
Não há derrotas quando é firme o passo. Ninguém fala em perder, ninguém recua.
Ninguém recuava, sonhávamos, acreditávamos sempre mais e depois seguíamos convictos. Dúvida? Não, mas luz, realidade e sonho que a luta amadurece.
Apoiados no talento e na sabedoria de cada um avançámos.
Temos uma emoção transmitida pelo gesto, pelo olhar. Há um esforço comum, todos dependem de todos. O esforço de um contagia o esforço de todos
O discurso de André Villas-Boas deveria ser de leitura obrigatória em muitos lugares: nas escolas, nos governos, nas igrejas, nas catequeses e nos escuteiros, nas empresas e nos sindicatos, por quem nos governa a qualquer nível: bispos, sacerdotes, professores, catequistas, presidentes de câmara, governos, troika, empresários. E também por quem nada manda. Há neste discurso tudo o que é preciso para fortalecer e motivar um grupo de trabalho, vista que camisola vista.
Camões disse não sei de quem, que «fraco rei torna fraca a gente forte»; mas sei que de quando em vez surge um «rei forte [que] torna forte a fraca gente.» O discurso de AVB é desses que torna fortes os fracos. Há nele uma força mobilizadora, uma lava indomável que deveria ser ouvida por uma nação em crise, desconfiada e desalentada; para ser ouvida pelas Igrejas, pela nossa Igreja que se vai esvaindo, donde tantos cristãos se retiram à sorrelfa. Alguém deveria erguer a voz e dizer que o esforço de um punhado (ou de apenas um) deve motivar o esforço de todos; dizer que somos uma comunidade, um povo que caminha, que tem uma estrutura que exige de todos um esforço comum porque todos dependem de todos. Eu de ti, tu de mim. Quem manda de quem obedece, quem obedece de quem manda.
Neste tempo de individualismo e de estilhaços, haveria de erguer-se o nós, o todos, o comum, o coro. Neste tempo mole e de descompromisso haveria de erguer-se o valor do passo firme e do ninguém recua.
Não creio que o singular se deva diluir sem mais no comunitário. Não. Mas creio que todo o AVB sabe que alturas há em que devemos motivar o coro e noutras os solistas. Que se os solistas se arrimam o coro se empolga! Porque o esforço contagia e o exemplo ilumina. Essa é a meu ver a tarefa do capitão de equipa: motivar, carregar, segurar o bastão e congregar. Cimentar a coesão evitar o desagregamento. Num grupo ou numa comunidade não existem indivíduos a mais, porém é necessário fazer com que cada um assuma em si a força agregadora do conjunto e trabalhe para arrimar o comum.
É certo que ninguém nasce feito. Nem o santo nem o treinador de futebol. Que cabe à comunidade construir os que se aproximam e se vão iniciando em torno a um projecto comum. Não é ainda o tempo de entregar isto aos velhacos nem de o abandonar aos amorfos.
Isto digo eu que não sou nenhum AVB. Mas, visto que é Advento valeria a pena parar para pensar e para remontar.


[27 de Novembro de 2011]

Notas de Roda-pé


Passos no Verão

Era o primeiro dia de Verão a sério. Sério descia eu a suave ladeira do Hospital – E só agora reparo que o colocaram no mais alto da cidade, como quem nos mostra o Calvário quotidiano de tantos! Descia, dizia, a suave ladeira do Hospital e a meu lado uma mulher que ali limpa escadas e corredores caiu na passadeira com as três sacas do supermercado, a bolsa e a esfregona que também levava. A mulher tem três filhos, mas foram outros que a levantaram sem conseguir evitar-lhe um olho negro que vai inchar, um galo na testa e escoriações nos braços e nas mãos, e mais fundas nos joelhos. Queixava-se muito dum pulso, mas como precisa muito dele para cuidar da casa e da casa de dois velhotes e da casa duma viúva acamada e passar a esfregona pelos longos corredores do Calvário nem se atrevia muito a falar disso.
(Ó Santa Mãe da dor, – Gravai no meu coração as chagas do Redentor.)
Em sentido contrário o passeio subia. Subia ligeiro. Ninguém apressava o passo, talvez mais por causa do calor. Na paragem dos autocarros saíram três passageiras. Duas eram novas e teriam os seus dramas, que as dores a todos tocam. Falavam inglês e desapareceram como gazelas ligeiras e frescas pelas sombras do jardinzinho. A terceira, uma velhinha de negro, dum luto cerrado que parecia levado por muitos, talvez por marido e filhos, desceu a custo o último degrau. Só podia ir para o Calvário com a sua malinha preta cheia de exames e credenciais. Dava saltinhos, caminhava a impulsos. Não dava passos, arrastava-se num tremer que não sei explicar mas a fazia andar. Nas fontes os cabelos brancos bailaricavam, única nota que me pareceu de alguma alegria no engelho daquele corpo. Pensei que se ia para o Calvário demoraria a chegar naqueles passinhos tão curtos. Mas se para o Calvário não ia, para que outro calvário iria, pensei. Passei, cruzei-me com o seu rosto resignado e firme, como quem vai em missão. Como quem vai determinada em missão.
(Meu Jesus, por vosso passos, – recebei em vossos braços este pobre pecador.)
Na escadaria que ali há junto daquelas duas igrejas, uma das quais vai amolecendo e ruindo silenciosamente por dentro como um cancro, um conhecido e público farrapo de mulher curtido a garrafas de vinho, partilhava migalhas de não sei quê com as pombas. As pombas gostavam do que lhes dava, tal o atropelo de asas e bicos que ali se assistia. As pombas não nos falam, mas ainda assim, ou talvez por isso, são mais pacíficas que muitos humanos e devem perceber muito da nossa solidão. Tanto que algumas trepavam-lhe para o regaço e para os ombros. E comiam-lhe à mão. E beijavam-lhe a cara. A velha sorria contente por ter três dentes a mais que as pombas e pelo afago das unhas que lhe subiam pela blusa acima. Algumas das que lhe comiam à mão ela as afagava, as que ficavam no chão davam saltos como quem luta pelo melhor quinhão. Não vi na velha coisa que fosse bela, nem o sorriso que ia demolhando em dois pacotes de vinho. A velha escura e negra de pele teria – quem sabe – uma alma branca e até bem mais branca que a de tantos que são de branca comunhão diária. E meditei no drama ou revolução que a tinha despojado quase inteiramente de humanidade e a levava a consolar-se na fraternidade com as pombas.
(Ó pai Eterno eu vos ofereço as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, – para curar as chagas das nossas almas.)
As eras galgaram as paredes das casas do Bairro dos Ferroviários e já há muito entram por debaixo das telhas. Entram e passeiam-se pelo forro das casas, porque precisam de respirar e dentro delas não há luz. O mato cresceu e cobriu três ou quatro carcaças de carros perdidos da memória dos donos. As janelas e as portas foram prudentemente tamponadas a tijolos de cimento, mas ainda assim vive ali alguém. Uma comunidade de zombies fugidios, pelo menos. Que eu saiba não se dão muito a conhecer, nem incomodam cidadãos. Creio também que não querem ser vistos e notados. (Terão ido lá as meninas do Census?, penso eu dubitando justificadamente.) Não sei como vivem que lá não me atrevo a entrar, mas não vivem bem concerteza. Dão passos melancólicos que só servem para afastar-se mostrando-nos as costas enquanto vão indo, indo, indo como quem acaba de reentrar numa nova trip. Para eles não tenho mais discurso que um pensamento estupidamente incapaz e humanamente vazio e talvez covarde.
(Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison.)
Na porta da minha igreja, que tantas vezes eu digo ser o centro do jardim da comunidade que somos, espera-me um casal. Entramos para a clemência da sombra do átrio. Ali podemos falar e eu ouvi-los contar por que estão ambos embrulhados em ligaduras nas mãos e nos pés. As das mãos são visíveis e reais, pois se vêem bem. As dos pés não são visíveis mas são reais, porque pudessem eles e fugiam daqui. Mas são muitos os grilhões que os prendem e a história e tradições que os impedem de aproveitar as correntes de ar e voar daqui.
Ontem à noite podia ter sido uma tragédia em minha casa. E por causa da droga. O nosso único filho bateu-nos aos dois. Esperávamos amparo e consolo na velhice e só temos amargura para beber. Já estávamos conformados que não viesse à Igreja nem quisesse rezar o Terço connosco, que fizesse a vida dele, desde que não nos incomodasse. Mas caiu no poço da droga e já não tenho forças para de lá o tirar. Ontem bateu-nos porque não tínhamos dinheiro para a dose. Foi muito feio. Nunca pensei levar dum filho, eu e a minha mulher. Magoamo-nos os três nos vidros que se partiram a nossos pés!
O Santíssimo que se encontrava lá em cima e também no meio de nós foi testemunha do que ouvi. O sangue dos três misturou-se abundantemente como se fora uma única flagelação – a flagelação duma família que outrora foi boa e modelar. Hoje estão todos cosidos a pontos que unem as carnes mas não a alma e coração.
Entrámos por fim na Igreja para rezarmos os três à Senhora da Agonia.
(Meu Jesus, perdão e misericórdia, – Pelos méritos das vossas santas chagas.)

[27 de Julho de 2011]


Notas de Roda-pé


Continente de Missão

A Banda Mais Bonita da Cidade não é de cá. E de lá, do Brasil. Parece de facto bonita. Canta uma canção muito simples que se chama Oração. São uns vinte jovens a cantá-la.
Numa noite de verão caiu-me suave na alma como a chuva duma última oração. Diz o refrão: «Coração não é tão simples/quanto pensa,/nele cabe o que não cabe/na despensa.» Impelido por esta última oração desembrulho alguns restos e indícios que trago guardados sobre a missão.
Ninguém anda confortável. Os antigos, porque tudo mudou e já nada é como dantes. Os novos, porque tudo é tão parado e assim não dá. Já nada é como dantes. A transmissão da fé também não. Ambas gerações cuidam coabitar a dura faixa da terra de ninguém. Porque a sociedade já não é cristã terminou o tempo em que a fé se transmitia escorreitamente por continuidade. Agora que os tempos são de pluralidade resta-nos o firme dever de anunciar Jesus e a sua mensagem em diálogo com os demais. E não estamos habituados a isso.
Não podemos impor, apenas propor. Ou não aceitarão o que temos para dizer.
A juventude é uma questão de hoje, porque só agora há juventude: antes saltava-se sem mais da infância para a adultez. Hoje, porém, os jovens são-no durante vinte anos! Merecem toda a atenção. Se sempre questionaram o que a geração anterior estimou e lhes legou, também é verdade que agora rejeitam mais liminarmente a fé que vivemos e lhes é apresentada, mais a mais se a embrulhamos em obrigações e incoerências.
Olhando a JMJ Madrid 2011 consolidou-se em mim a convicção de que os jovens são hoje o novo continente de missão. Esteve ali uma imensa minoria de 1 500 000 jovens. Óptimo! Mas acabo a pensar que de todo não estiveram ali os mais significativos da nossa sociedade ocidental e europeia.
(As JMJ serão só para esses? E os outros tantos que não se revêem nesse modelo?)
A missão tem de começar. Em razão dessa urgência dei ali pela falta: 1. Dos jovens que acusam a Igreja de não ser nem transparente nem lugar de crescimento e comunicação da fé; 2. Dos incomodados pelas incoerências dos que devemos testemunhar a adesão a Jesus Cristo; 3. Dos jovens com questões absurdas e acusações inconsequentes, mas ainda assim abertos a caminhar caminhos de transcendência sempre atentos aos pés solidários que trilham o pó da terra; 4. Dos que anseiam viver a fé doutra maneira, mas para quem o luto das celebrações os agride e a alegria da fé tarda em alvorecer; 5. Dos desiludidos que nasceram cristãos e cuja relação de comunhão com a Igreja se rompeu; 6. Dos jovens filhos de rupturas familiares e sociais que hoje não sabem bem quem são, donde vêm, para onde vão.
Existe uma multidão de jovens murchos e abandonados formando um continente novo como aquela ilha do tamanho dos EUA (!) que voga pelo Pacífico, feita dos restos plásticos da sociedade de consumo! Que fazemos deles e por eles? Como (re)acender a chama da fé nesse imenso continente juvenil?
Facto: Depois da JMJ caiu-me no confessionário um rapaz, A., da juventude do Papa. Confessou-se como se confessam quase todos os jovens portugueses. Não sei como mas acabámos demorando-nos pelo trivial da fé. Ou nem isso. Havia, porém, ali, busca, inquietude: talvez seja sacerdote um dia, quem sabe? Não me recordo por que se viera confessar! E ele não sabia se eu era padre, porque tinha túnica, porque me pendia uma estola roxa dos ombros, nem porque se ajoelhara em vez de sentar-se! Não distinguia padres de frades, evangelistas de apóstolos! Não sabia o Acto de Contrição, desistira da catequese, da Missa, dos Sacramentos! Sabia o Pai Nosso e o nome da Igreja: do Carmo.
Fora às JMJ Madrid 2011!
Achou oportuno falar com alguém sobre elas. Perdido, de férias em casa não encontrara interlocutor. Por entre as brumas duma sociedade que deixou de ser cristã descobriu uma igreja, entrou, tacteou e ajoelhou-se. Eu estava ali. Preocupado, estava ali. Preocupam-me estas questões da transmissão da fé. Preocupam-me os jovens atravessando um mar cultural plural sem saber centrar o seu coração e vida na vida e coração de Jesus. Preocupam-me as nossas infidelidades ao Evangelho que a todos ferem – e a eles mais! –, e as infidelidades aos problemas reais das pessoas; umas e outras atiram os jovens para fora da barca e causticam o futuro da fé.
Antes, num antigamente mais antigo, não havia alternativa à fé: nascia-se cristão e ali se medrava, definhava e por fim era ainda ali que se ouvia a Última Encomendação. Ao longo do rio da vida as soluções, as ofertas e possibilidades irrompiam esparzidas com água benta. Não assim hoje. A Igreja perdeu naturalmente esse poder. No ocidente o cristianismo já não pode apresentar-se como religião natural, onde se entra porque é assim, porque é natural que se entre.
(Não li eu o Bispo do Porto durante as JMJ dizer que o Cristianismo vive a sua pior crise de sempre e que só se salva refundando-se? – sim, creio que li, mas como era num jornal laico…)
Entrámos numa nova era da sementeira da Palavra. O campo é vastíssimo: um continente inteiro e diferenciado! Cabe-nos semear a Palavra em cálidas experiências de comunhão com Jesus, homem e Deus aberto a todos os homens e mulheres. Creio que o futuro exige quem saiba dizer e testemunhar o encontro e o diálogo com Jesus e o compromisso que implica a entrega de vida aos demais. É isso que venho pressentindo quando me pedem palavras de fé verdadeira, caminho com afectos, diálogo de comunhão, compromisso radical.
Não saberei dizer donde surgirão os homens e mulheres com força interior para avançar para o novo continente de missão. Mas sei que ainda não é tempo de depreciar, porquanto nos diz o Apóstolo João: «Escrevo-vos, jovens, porque vencestes. Porque sois fortes. Porque a Palavra de Deus está em vós.»
Encerradas as JMJ restaram 250 000 jovens em Madrid. Dum palco alguém clamou então por vinte mil jovens sacerdotes para evangelizar a China. Subiram ao palco cinco mil rapazes e 2.300 raparigas. Não creio que todos sejam ordenados, mas o caminho de evangelização daquele país-continente parece estar recomeçado. É hora de nascer o dia do novo continente de missão: os jovens. Quem se lhe dedicará? Quantos corações serão necessários para o percorrer?

(Declaração de interesses: Participei em três JMJ: Santiago de Compostela, Paris e Roma. Indirectamente em Colónia e Madrid.)

[14 de Setembro de 2011]

Notas de Roda-pé

Carta a J.
J.,
Sei que não aprecias estes gestos, mais a mais se são públicos. Mas crê que o faço não tanto por ti, mas por aqueles tantos que trazes pelos caminhos do coração e a ti te levam também. É a pensar neles por ti que te escrevo com o coração.
Também te devo confiar que sempre fico à nora, quando recebo a mais que prometida ameaça do Pe. Leal convidando-me a esparcir letras em duas páginas brancas do Mensageiro. Quando me chega o fatídico mail, pumba!, lá se vai a ilusão de que se tenha esquecido de mim. Aceita, por isso, carregar comigo esta cruz. Aceita esta carta e guarda-a, para um dia, mais calmamente, falarmos sobre ela.
Pelo canto do olho apercebi-me por estes dias dum filme que irei ver só. O nome do filme é: Encontrarás Dragões, e, ou me engano ou retrata a vida dum santo. Um santo quase do nosso tempo e muito pouco consensual na nossa Igreja.
Não tenho certezas disto que digo, porque me apercebi dele enquanto trocava dois dedos de conversa no recreio da comunidade. Mas o certo é que dragões e santos casam bem e é bem plausível que caminhem a par.
Por ora não estou seguro que o filme seja a biografia dum santo. Mas um título assim é um arranque hagiográfico fortíssimo, e isso inspira-me a escrever-te! Se assim for, isto é, se se tratar da biografia do tal santo, não sei se a sua comunidade validou o título e o relato, nem isso me interessa. O interessante para mim é escrever-te agora, agora mesmo que me encontro espevitado por tão sugestivo título.
Sabes, J., já nos conhecemos há algum tempo, o suficiente para que eu te diga ou fale livremente em dragões. E sei que falando-te assim não vais imaginar princesas prisioneiras em castelos à espera de cavaleiros em aladas montadas e de armaduras fulgentes. Tu já passaste a fase das princesas. Sei, por isso, que posso falar-te em dragões e que compreenderás o que quero dizer-te. Sei que sabes que eles existem, que nos povoam os sonhos, nos turbam as andanças, nos tiram do sério, nos tolhem os passos. Sei que sabes que há dragões e dragões, por isso te escrevo.
A tua vida jovem é uma vida na Igreja de Jesus, isto é, compassada com o sentir e o servir da nossa Igreja. Sinto isso e nisso não me engano. E é também por seres dos amigos de Jesus e até líder deles, que eu te quis escrever esta carta aberta.
O encontro com os dragões não é privilégio dos jovens, mas de todos os discípulos do Senhor. Porém, é a ti que me dirijo. E dir-te-ei que os há externos a nós e outros que brotam de dentro. Por exemplo, há um dragão que se chama Não: Não Sou Capaz! E em alguns lugares tem ainda nomes como Não Tenho Jeito, Não tenho Tempo ou Isso Não é Para Mim. Os nomes variam, mas o medo que infundem é o mesmo. Sei que te confrontas frequentemente com esse dragão. Sei que sim porque mo disseste e porque por vezes o vejo na tua cara. Mas, sabes, não é tanto assim. Deixa até que te diga: J., esse dragão não existe! E se existe é porque deixas que exista! E se tanto te assusta e aumenta é porque lhe dás espaço, o deixas entrar, lhe conferes existência acreditando que existe. Sim, não tenhas medo. Não estavas comigo neste domingo quando Jesus, no Evangelho, prometeu aos discípulos que faríamos as obras Dele? É isso! Confia. Esta é a hora dos discípulos, sejam grandes ou pequenos, santos ou quase. Quem poderá dizer que não é capaz? Olha olhos nos olhos o Evangelho de Jesus e diz-me como podes dizer que não és capaz? Sim eu sei que encontras muitas vezes esse dragão. Mas em quem confias, no dragão que te assusta ou nas palavras de Jesus? Já viste, certamente, nas tuas passeatas, os penedos escalvados das montanhas. Estão ali como sentinelas. Parece que nada mais fazem que isso, mas se os visitares verás que na primavera esses rochedos duros dão flores que brotam das pequenas fendas e cavidades onde se acumulou algum pó e humidade! Oh, J., J., não vês esses penedos onde dançam flores? É certo que por pouco tempo; mas quem, no inverno, diria que deles nasceriam florinhas que adoçam o olhar do Pai do Céu? Ah!, meu Deus, se dos rochedos despontam florinhas, quanto mais de ti não hão-de sair obras e palavras belas que louvem a Deus e nos levarão contigo a louvá-Lo também!
Esse dragão e outros da mesma estirpe, que eu saiba, não existe. Matei-o eu. E tu poderás matá-lo também no próximo encontro.
Sim, eu sei. Há também dragões que te acossam desde fora. Chamam-se Ainda e são falsos espantos e reles admirações escarninhas. Dão por nomes, como: Ainda Vais à Missa!, Ainda Rezas! Ainda Ligas aos Padres! Ainda Vives na Idade Média!. Pois é, eu sei. Somos muito condicionados desde fora e para sermos aceites temos de já não ir à Missa e por aí adiante. Eu sei que este dragão é terrível, que te crava as unhatas horrorosas, que te rasga com a língua afiada, que te fuzila como um basilisco. É triste que para se estar bem, ser chic ou estar in não se possa cheirar a incenso nem a água benta! Nem ter antes recitado orações!
É míope, esse dragão! Tem, contudo, um poder irresistível, uma confiança inabalável e ostraciza como ninguém. Diz que o tempo cristão acabou e que vinte séculos foram suficientes para provar o que poderíamos mudar. Desse já eu cuidei também. Sabes como? Regresso mais uma vez ao Evangelho de Jesus que diz que na Casa do Pai há muitas moradas. A modo imperfeito vejo a Casa do Pai como um extensíssima montanha cheia de pequenas cabanas ou moradas. Cada uma com o seu caminho para lá chegar. Muitas moradas, muitos caminhos. E então penso, porque não hás-de pensar assim nos teus sobressaltos com os Ainda: – Poxa! Na nossa história nem tudo foi mau ou está definitivamente perdido! E há ainda muito por fazer ao longo do caminho da história!
Ânimo, pois! Coragem! É sempre possível fazer melhor, caminhar melhor, servir melhor, sorrir melhor! Convence-te de que tens de seguir em frente com garra de carmelita, venha o que vier, suceda o que suceder, voe quem voar! O caminho é para fazer, quer tenha dragões ou não! Por isso, hás-de pensar e acertarás: – Por que hão-de sempre azucrinar-me a cabeça? Por que hão-de tolher-me os passos e ceifar-me os desejos de me dedicar à causa de Jesus?
Sim, é isso. Se os caminhos são muitos, porque hão-de invadir constantemente o teu? Não lhes basta o deles?
Bem, J., o assunto a ficar assim fica um pouco agreste. A verdade, porém, é que as moscas se caçam com o azeite. E os dragões também. Fica por isso aqui um pingo dele, cheio de suavidade: se os caminhos são muitos, porque não hão-de eles mudar de caminho por causa do amor forte, que apesar de tudo, a tua amizade lhes tem? É que tens mesmo jeito e coragem para isso! Já pensaste nisso sem medo?...
Fico-me por aqui, porque o papel se me acabou. Porém, como os dragões são muitos, e muitas vezes te encontrarás com eles, não te admires se mais além nos cartearmos de novo. Para te animar! Teu,

fj
[26 de Maio de 2011]

sábado, 23 de novembro de 2013

Ahí estamos!


Ahí estamos!
Pueden los Carmelitas Descalzos no estar donde está toda la gente: los niños y los jóvenes, los inquietos y los indiferentes, los amigos fuertes de Dios y los buscadores, los adversarios y todos los amigos nuestros? Podemos no estar en la Rede? Podemos no estar donde lo que no es visto nadie le conoce, y se no se le conoce es porque no existe? Si, corremos el riesgo muy serio de no existir, porque, saludablemente, seguimos preferiendo lo real quando las gentes nos buscan en lo virtual y en las hojas fragiles que una vez leídas vuelan y se alejan y se deshacen de la memoria.
Del 21 al 27 de Septiembre se realizó en la Universidad de La Mística, el Cites, en Ávila, el I Congreso sobre la información en nuestra Orden. Y allí se nos recordó com mucho acierto que también el Carmelo ha de estar muy vivo donde empieza a ser más comun que nos busquen: las redes sociales.
Si es verdad que la gente nos busca; si es verdad que todos, también los Carmelitas, queremos ser buscados, debemos com ahinco cuidar de aprimorar la calidad de nuestra presencia y de nuestra imagen allá mismo, donde primero nos buscan. No hacerlo significaria despreciar la sede de los buscadores.
Los participantes – frailes carmelitas y algunos laicos – veníamos de cerca de 40 países buscando aprender como mejorar la información (y comunicación) hacia dentro e hacia fuera de la Orden. En especial buscando mejorar la manera de presentar el projimo e magno evento de la celebración del V centenario del nacimiento de Teresa de Jesús, madre nuestra.
A lo largo de estos dias las charlas fueran profundas y visaron lo esencial. Así, para lograr la eficacia de la notícia es mui importante que se la trasmita con simplicidad, sencillez e sobriedad. Com meridiana llaneza nos lo dijeron los expertos de la comunicación: a la sencillez y a la objetividad nada gana en la elaboración de la noticia, a sabiendas que es mejor no decir que decir mal, y que es sempre difícil decidir lo que debemos escribir u noticiar.
Cierto es que vivimos tiempos de miedo a la prensa. Miedo, o mejor dicho: horror a la imagen distorcionada en que suelen sacar a la Iglesia en las primeras paginas. Nos hemos acostumbrado a tener por cierto que siempre sacan lo negro de los escandalos, sean cuales sean. Debemos mantener esa fobia? Creemos, nos lo dijeran los profesores, que es necesario hacer indistintamente de todos los medios de comunicacion aliados nuestros y de nuestra misión. Es cierto que suelen ser muy ajenos a lo nuestro, pero también es cierto que muchísimas vezes lo son por desconocimento y por falta de invitación nuestra a camiñar juntos un trozo de nuestro camino.
Es verdad – Y verdad de veras! – que si somos guardianes de un gran tesoro, él tanto más crece quanto más se difunde! Podremos ocultarlo y reservarlo sólo para nosotros? Osaremos callar la Palavra que da vida? Despreciaremos los medios, más sencillos o más eficaces, que puedan amplificar la Buena Nueva que resuena en el silencio de nuestros claustros?
Suele decirse que la Iglésia es experta en humanidad. Y algo inhabil en comunicar en lo virtual la Palavra salvadora. Mas allá de las fronteras de nuestra tribu – los muy pocos que entran en nuestras iglésias – viven y crecen los sedientos de buenas nuevas. Como iremos llenar su sed del agua viva que les puede saciar? – Esta pregunta por ahora pervive sin suficiente respuesta.
Todo ser humano es comunicación y encuentro. Todo cristiano es invitado a salir dando testimonio de su fe incarnada en el mundo. Los Carmelitas somos hombres y mujeres portadores de memoria. Ayer, en los momentos mas récios e ingentes, la Iglésia, como buena madre, supo llegar al corazon de sus hijos y acalentar sus esperanzas. En este momento de la historia que nos toca vivir hemos de reaprender a decir, o sea, a transmitir, por todo los medios a nuestra mano, la suave novedad de la única Palavra que serena y calma y salva.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Notas de Roda-pé


A Cruz Branca

(Não é especialmente bela, mas é dela que vou falar.)
Vá à varanda, é o meu convite.
A varanda neste caso é Paços de Gaiolo, em Marco de Canaveses. Se visitar o Santuário do Menino Jesus de Praga, recomendo-lhe que regressando à sede do Concelho pergunte ali por onde se vai a Paços. Toda a gente saberá indicar-lhe a Estrada Larga, que lhe abre a porta para a segunda peregrinação do dia.
O que lhe aparecer pela frente é digno de nota, e até vale uma canção. Se souber cantar o Hino das Criaturas, cante; o que lhe enxagua os olhos bem o merece! Mas não se detenha! Poderia parar nos doces do Freixo e comprar. Mas há coisas mais doces. Poderia parar nas ruínas vetustas de Tongobriga. Mas há coisas mais antigas.
Vá à varanda. É sempre em frente. Em caso de dúvida pergunte. Se perguntar onde fica a Barragem do Carrapatelo também dá. Quando chegar desça para a barragem. Depois, a um lanço de metros que agora não sei medir, guine à esquerda, em direcção à Prainha. A condução não será fácil, por ser um empedrado muito estreito e a pique. Os locais garantem, porém, que até um autocarro de gente já desceu ao rio!
Ali pode descansar, dormir a sesta, rezar, piquenicar e até banhar-se.
Quando lá fui a Primavera ainda não tinha rebentado. A natureza jazia escura, como fundo e escuro é o rio também. Não há muito para onde olhar: ou se olha para o rio escuro, ou para as margens que trepam por ali acima e lhe entaimpam a vista. Não se vê muito, de facto. O arruamento está limpo e asseado. Siga para montante, porque em direcção à foz logo encontraria o muro e as comportas da barragem. E se por ali há grandes quintas abandonadas e desprezadas também há quintaizinhos de gente pobre ou remediada que sabe ainda duma cavadela arrancar batatas e feijões, e do ar tirar uma pinga de vinho e outra de azeite. E também há cascatas que se não vêem mas se ouvem e nos dançam nos ouvidos. E no resto vamos por ali, andando, andando, num passeio que sabe a refresco.
Um passeio que a mim muito impressionou quando o fiz.
Algures, sem pré-aviso, há uma fraga. Uma fraga rija que se adentra ligeiramente pela albufeira e que em tempos enfrentou o Douro como um aríete. É de respeito. Dizem os dali que os rabelos carregados de vinho generoso, depois do Porto, se aproximavam para comerciar uma dormida mais fofa, umas broas frescas, um capão, uns ovos e até uns vegetais. E em troca recebiam um cântaro daquele bálsamo que ajudava a sonhar em português antes de embalar os charutos dos lordes ingleses.
É nessa fraga que se encontra a Cruz Branca. Como digo não é especialmente bela. E nem todos se aproximam dela. Infunde um certo respeito por falar ao antigo, por ser branca no meio de tanto escuro, por sei lá, por falar de dores antigas e esperanças perdidas. Ali rezei um Padre Nosso, e quando dela me lembro vem-me logo à memória a desmesura do esforço de fazer boiar rio abaixo um rabelo carregado de vinho.
(E o que não seria trazê-lo de regresso a casa!)
Se um corpo precisa de veias e artérias para que se lhe reguem os órgãos e os músculos, também o da mãe terra precisa de rios que lhe reguem a alma e o ventre para que à gente dê flores, esperanças e filhos.
Quanta água não leva o Douro! E quantas pingas tintas não recebeu ele nas suas águas, à moda da immixtio que o sacerdote procede no cálice eucarístico!
Aquela Cruz Branca infunde-me terror. Um terror sagrado, direi. A fraga em que se assentam os pés parece-me um altar donde ainda hoje se erguem orações, qual montanha de puro incenso prenhe de tanto sacrifício humano! Quem me dirá as vidas que o rio tragou? Que canção cantará tanta dor ali arrimada? Quem me falará dos seus tenros órfãos e das suas viúvas negras? Quem contou o suor dos que para salvar o lucro dum ano se esbaforiram no afago das fragas a fim de evitar o rombo no barco? Como seriam aquelas noites mal dormidas e as crespas manhãs de nevoeiro espesso? E que tremeluz não significaria aquela Cruz Branca?
Sim, já o disse. Aquela fraga é um altar com a sua cruz branca no meio. Ali se consagrou o sacrifício dum povo pobre que bebia a vida do rio e a caridade de quem sendo pobre restava no aconchego das margens e nas courelas de centeio.
Aquela Cruz Branca mais tosca que bela, hei-de visitá-la outra vez. Visitá-la-ei em peregrinação. Irei por respeito ao rio e às suas rijas gentes. Aos que o amaram e o beberam, e aos que lhe escanhoaram as margens com a enxada e a foicinha. Irei de novo àquela Cruz Branca e não irei só. Irei por respeito ao sacrifício de Jesus, dom derramado para nós em todas as veias da terra. E por respeito ao sacrifício dos que ali ergueram um naco de cultura e fundearam a fé. Irei de novo ali, cansado dos ventos que me rasgam as velas e estraçalham os mastros. Irei como quem ao aproximar-se a noite escura ali precisa de ancorar.
Às nove horas do próximo dia 16 de Abril irei rezar junto da Cruz de Paços de Gaiolo, que não é bela mas é branca.


 [28 de Março de 2011]