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sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Notas de Roda-pé


A raposa

Todos falhamos, eu também. Intimamente propus-me no início do Ano Pastoral publicitar em tempo útil os pequenos oásis espirituais que, em tempo de férias estivais, brotam aqui e ali, à sombra de mosteiros ou santuários, como pequenas elevações de meditação e reflexão que a tantos renovam e convidam a subir. São recantos vários de tonalidades várias que por esse pequenino Portugal fora vão vivificando comunidades e gentes com a água viva do Espírito de Deus. São oásis, pronto. Pequenos remansos que purificam a seiva de comunidades, famílias e fiéis, sacerdotes e consagrados. Existem para todos os gostos, quero dizer, formatos, e são normalmente bem dirigidos e de substância consistente e nutritiva.
Seriam coisas do género Semanas de Espiritualidade, Jornadas de Oração, Encontros de Amigos de Orar – actividades promovidas pelo Centro de Espiritualidade de S. Teresa, adossado ao Santuário do Menino Jesus de Praga. São momentos fortes pensados para pessoas que chegam em família ou em grupo e até individualmente para regenerar o corpo, descansar o espírito e rezar.
Propus-me, dizia, publicitar esses pequenos oásis. Não o fiz e penitencio-me. Mas por que não o fiz, pergunto-me? Porque perdi essa oportunidade de conduzir alguém para esses quase secretos recolhimentos? Não o fiz por desorganização. É certo que não tenho nem muito espaço nem muitos meios, mas a disponibilidade de que disponho poderia ter sido usada para divulgar tanto bem que brota silencioso, tanta fonte generosa que por aí corre discreta. E não o fiz porque o ruído me caiu em cima, me dispersou, forçando-me ao lufa-lufa que cansa e distrai, obrigando-me a correr e a esquecer que é mais importante a atenção à beleza interior que a da fachada.
Falhei, está dito. Quero agora reorientar-me. Falarei por isso de raposas e de cães.
Conta-se num conto, talvez inglês, quem sabe, que numa caçada à raposa alguém se pôs a observar os cães. E que verificou? Verificou que numa dessas célebres caçadas os tempos são distintos e para resolver com naturalidade. Assim, há o tempo da espera, da perseguição e o fim. Enquanto se espera parece que nada passa, mas passa. Os senhores vão chegando com as suas matilhas trazidas por criados e servos. Chegam em suas jaulas, não por serem ferozes mas para os transportar seguros. À chegada a maioria dormita, parece desinteressada, mas na realidade não dispersam forças, e latem para sinalizar a presença e trocar pequenas mensagens, como quem diz: pensavam que eu não vinha?­­
Depois dá-se a largada e ao que parece um ligeira vantagem à raposa, que é hábil e ladina como se sabe. Logo de seguida largam-se matilhas enormes de cães que são seguidos pelos seus senhores a cavalo. Aqui vem o interessante da história. Depois que se dá a largada da cãozoada aquilo torna-se latir infernal. Todo o cão que por ali há, de tão excitado que se encontra, grita e esganifa-se na sua linguagem canina, e persegue o mais que pode a pobre raposa. Diz quem viu que a chinfrineira é infernal. Todo o cão berra, todo o cão late, todo o cão ladra no limiar da excitação. Correm como loucos, saltam valas e valados, vencem outeiros, ribeiros e muros. Tudo vale para se animarem a correr, para perseguir a prima raposa que lhes largaram à desfilada mesmo à frente do focinho.
Diz quem viu que alguns cães acabam por abandonar a perseguição. Não, não é que não saibam do ofício. O certo é que muito antes do fim alguns canídeos o abandonam. No entanto, a maioria prossegue a demanda. Mas logo outros, mais à frente, se vão deixando ficar. Também não é por se terem cansado, que alguns certamente se cansam mais rapidamente que outros. A verdade é que ainda muitos animam outros muitos. E todos correm e os senhores lordes também. Creio que a caçada ainda não vai a meio e mais de metade da matilha já se deixou ficar!
Creiam que é verdade, quem viu foi quem me contou. Aquilo é desporto de senhores, mas não dispensa as mais ágeis destrezas dos fiéis amigos dos humanos. Quando, falta um pouco menos dum terço são já pouquíssimos os cães dedicados a sinalizar a espantada raposa fuginte. E serão cada vez menos até serem poucos e raros.
Algumas vezes a raposa não é alcançada. Quando assim é merece o prémio da liberdade. Outras vezes é. Mas a pergunta que aqui conta e a que quero chegar é: por que tantos cães desistem da perseguição? Só sei o que me disseram: a grandíssima maioria desiste. Porque será? A resposta não é óbvia e de fácil alcance, por isso a adianto: os perseguidores vão desistindo porque vão deixando de ver a perseguida! À medida que a vão deixando de ver abandonam a correria louca e param! Enfim, alguma vantagem a raposa há-de ter sobre os primos. Eis o interessante: o ver é fundamental para manter vivo o interesse da perseguição. Não ver leva ao desânimo e à desistência. Na verdade parece que estas caçadas já não se realizam. Porém, a moral da história mantém-se.
Vertida a metáfora para a pastoral cristã, também por aí, creio, se pode justificar o porquê de tantos baptizados abandonarem os seus compromissos, o seu testemunho. Enfim, uns após outros, e muitos depois de muitos, vão deixando-se ficar e deixam de seguir o Senhor que caminha bem lá à frente de todos!
Creio que é bem plausível a hipótese. E é por essa razão que me penitencio. Enfim, neste Verão, terei contribuído para que alguns deixassem de ver a raposa? E esfriassem a sua fé e confiança no Senhor que chama a segui-Lo? Não sei. Mas sei que gostaria de não ter esta dúvida.

Máxima
«Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz e siga-me.» (Lucas 9:23)

Mínima

«Onde é que te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste, havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras ido.» (S. João da Cruz)


[20 de maio de 2010]

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Notas de Roda-pé




Coração

(Não queria falar da crise. Por que muito se fala dela a propósito e a despropósito. E isso faz-me frio, um frio de descrença a que nós não estávamos habituados. Mas não falar dela torna-a ainda mais presente. Por isso falarei da lareira onde a crise se derrete: o coração!)
Que o coração é de carne todos o sabemos, mas é carne-músculo, o que por si só indicia que deve ser enrijecida. Mas haverá músculo e músculo, rigidez e rigidez, esclerose e esclerose.
Dou por mim a pensar em corações. O de Paulo de Tarso deve ter sido bem rijo, atlético e até guerreiro, não é só por ter anunciado o Evangelho em muitas asperezas, mas pela maneira como o fez: ardente, combatente, irresignado, em constante labuta apologética, em permanente estado febril.
O de Bartolomeu de las Casas foi igualmente imenso e amplo, ardente como um tempestade de fogo e com um arco-íris, inquieto mas justo, digno, livre e paterno, persuasivo e exigente e inflexível se necessário.
O de Martinho de Porres foi pequenino e dócil e piedoso, atento e escravo, paciente e humilde, desapegado, piedoso e com espaço para uma vassoura, uma bacia de água e ligaduras.
O de João da Cruz foi sereno, suave e puro, decidido, austero e terno, forte, doce e amigo, nele cabiam frades e passarinhos, primaveras, santos e anjos, profetas, pobres e poesia, e tinha de certeza uma mangedoura e um calvário!
Os das mulheres, de que aqui não falei, são iguais, mas talvez ainda mais fortes, mais valentes, mais ternos, mais decididos.
Já tenho descansado em corações e corações. Já tenho tropeçado e encalhado neles. E até levado por eles como em carroças aos solavancos. Nada de mal, nada de mais. Assim é com todos. Corações há por aqui e ali, por onde vou, cuja solicitude e meiguice é um descanso, um refrigério, uma praia amena com areia quente e ondas suaves.
Também há os que esperam algo de mim, muito de mim: serenidade e paz na confissão, fortaleza e unção na Eucaristia, silêncio e ternura nas voltas pelo claustro, compreensão e perdão num locutório, atenção e ouvido no inesperado dum sobressalto qualquer, sorriso e bênção pelos carminhos. Direi apenas que se faz o que se pode, que nem sempre o coração chega a todas as cambiantes. E há outros que esperam que me deponha nas mãos deles e eu com tanto medo das duras tenazes de ferreiro!
Estamos em início de ano. Chegamos aqui tão cansados, que cansados havemos de por uma e outra vez os pés ao caminho.
Num dos acasos típicos destes tempos dei de frente com uma canção. Poderia transcrevê-la toda aqui, que valeria a pena. Mas tenho dificuldade em traduzi-la na sua simplicidade. É espanhola e chama-se Gente. Os intérpretes, Presuntos Implicados, é um nome que, julgo, supõe trocadilhos que eu não alcanço. Fui procurar a canção deles. Fala ela de gente banal, de pessoas simples, muito simples. De pessoas anónimas que vão fazendo milagres que se coam na tecedura do tempo. Gente em quem não reparamos, mas em quem eu quero reparar neste início do ano. Não governam empresas, não gastam salários estapafúrdios, não realizam milagres financeiros na Bolsa. São gente simples de sacos plásticos na mão, com dores de cabeça e artroses como os demais. É gente assim que precisamos, que vamos precisar de valorizar mais e mais. Gente sem preço, a quem peço que não desista. Gente que não põe preço no que faz, a quem de quando em vez nos esquecemos de sorrir, de agradecer. São heróis, os meus heróis de coração que não encolhe em tempo de crise. Só não movem o mundo, mas sem eles o mundo fica mais perro. São gente assim que aquece o mundo, que espanta o frio ao nos trazerem para junto de nós o suave latido do coração.
Há tanta gente que encurta as horas dos cansados, que faz sonhar desanimados; gente que reza junto dos altares, que acredita, infunde e traz a paz. Gente forte de olhar seguro que leva gente aos hospitais, que visita lares e esparze a solidão de tantos apartamentos que parecem túmulos. Gente bem lembrada que não pensa em si, cujo tempo estica, estica, estica, e junto de quem duas horas parecem dois dias soalheiros. Gente que adivinha o tempo, que tem sempre tempo para dar. E nenhum preço para cobrar. Há gente de olhar que não olha, não fere, não inquire. Gente como anjos, como anjos serenos que beijam o sulco das lágrimas.
Estamos cada vez mais frios, mais separados, mais ausentes uns dos outros, mais incapazes de nos levantarmos do chão porque há tesouros que ignoramos, valores que começamos a esquecer, que preferimos não ver, não imitar, não aprender, não agradecer. E assim a malha vai ficando mais larga mais larga e o calor esvaindo-se por aí expõe-nos ao gelo da crise.
Bom ano, bom coração.

Máxima
«Jesus vive perpetuamente para interceder por nós.» (Hebreus 7:25)

Mínima

«Deus visita-nos, mas, a maior parte do tempo, nós não estamos em casa.» (Joseph Roux)

[11 de Fevereiro de 2007]