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domingo, 11 de agosto de 2013

Notas de Roda-pé



You’ll never walk alone*

Escrevo a meio da visita apostólica de Bento XVI a Portugal. O peregrino do Bem da Verdade e da Beleza chegou, entretanto, ao Santuário de Fátima, como um filho que veio visitar a Mãe rodeado de muitos irmãos e irmãs. A sua simplicidade e pequenez já nos tocaram: não parece um pastor rijo de cajado na mão, é um valente, um menino manso como um cordeirinho dos Pastorinhos. Os frutos da sua visita serão abundantes, porque semeados na humildade de quem vive da esperança.
Nestes dias de beleza e de espiritualidade apostólicas parece-me quase descabido citar o que citarei, o hino do Liverpool, equipa de futebol de Inglaterra: *«Tu nunca caminharás sozinho.» Mas é isso que leio na força de Bento XVI ao vê-lo caminhar lento mas firme, trémulo mas resistente, cansado mas confiante. Vejo-o a espaços e vejo que não caminha só. Caminha como um pai, acena como um patriarca, fala como quem confirma, puxa a justeza das palavras como quem lança caboucos. Vejo que lhe batem palmas, que abre com gosto a janela do papamóvel, que sorri e acaricia como um avô, que vem uma e outra vez à varanda da nunciatura, que acarinha aqui um menino, ali uma turminha, e além beija dois bébés. (Ah, os meninos, meu Deus!) E abençoa sempre. Vejo que as multidões acorrem, correm, se apinham. Os corações abrem-se, os ouvidos ouvem, as famílias franqueiam-lhe os sorrisos da alma. (No Terreiro do Paço havia tantas famílias jovens que não foram poucos a surpreender-se com a multidão daqueles trambolhos que são os carrinhos de bebé!)
Ninguém merece caminhar sozinho. Bento XVI não caminhou sozinho em Portugal. Não caminhará nunca sozinho.
Ninguém merece ficar parado com medo de caminhar só. Ainda que agrilhoado à mais redonda e pesada das impossibilidades ninguém está impedido de caminhar e crescer. Se não física, pelo menos espiritualmente. O lugar duma pessoa, muito mais se tem fé, se é peregrino, são muitos lugares e sobretudo os caminhos. Peregrino foi quem nos iniciou na fé, peregrino foi Jesus, peregrina é a Igreja. Sou eu, és tu. Enquanto vives esperas caminhando. Enquanto vives muito há por caminhar. Caminhar é algo que tardamos em aprender, embora alguns aprendam e depois não sejam mais que múmias. Caminhar é sempre caminhar com. Connosco, com os pecadores, com Deus, com os anjos e os santos.
Quem acredita em Deus nunca está só, gritou ao mundo uma nuvem de jovens azul turquesa! Sim, quem caminha acreditando nunca está só, porque Deus vai lá bem no íntimo, mais íntimo a nós mesmos que nós próprios, como hóspede sereno e valoroso companheiro de jornada. É essa, parece-me, e atrevo-me, a alma do Papa: Ele sabe que não caminha só. Por isso, muito gosto eu daquele caminhar feito de passinhos curtos, passinhos de quem é certo que caminha cansado, de quem, porque também é certo, quer caminhar connosco, com todos, os que têm fé e os que a não têm. São uns passinhos de quem jamais deixará alguém para trás porque nunca caminhou só.
O seu caminho é o da verdade, o íngreme caminho do Calvário de Jesus. Nem todos vão por aí, mas é por aí que ele vai caminhando. Ele sabe o caminho e sabe que por vezes não é mais que um trilho na noite, um trilho de ásperas pedras e de rudes rijos tojos. E nem por isso ele pára, hesita ou fica para trás. Ele não desiste e não desilude. Anima-nos a enfrentar a aspereza da vida e a débacle dos sonhos.
Ninguém merece caminhar sozinho. E aí vai ele pelos caminhos do mundo, como irmão cuidando do amparo de cada irmão e de cada irmã. Ao ver-te, Pedro, caminhado assim, lembro os caminhos mais belos porque menos percorridos. Que o caminho é ao Céu, que ao Céu todos chegaremos qualquer que seja o caminho — e são tantos! Lembro que é melhor ir em comunidade, dois a dois, que um só por si. Esta noite, todas as noites, todas as luas e todos os sóis, hei-de caminhar com qualquer só que percorra os carreiros da terra do sei lá, com esse que julgando-se só caminha, afinal, acompanhado, porque é assim que eu quero que ele vá.
Algum experto declarou que as batalhas só as ganham os soldados cansados. Leio caminhos em vez de batalhas, e fica assim: só chegam ao fim quem nos caminhos se cansou. É preciso sair, é preciso caminhar e cansar. Vamos, pois, sem medo para o caminho que consuma a nossa esperança: o Céu.
Venha o que vier, quer trema o mundo ou se abalem os fundamentos: ninguém está só, ninguém caminha só.
E a lamparina da fé bruxeleia tremeluzente nas noites dos nossos dias.

Máxima
«Sai da tua casa, vai para a terra que te vou mostrar.» (Génesis 12:1)

Mínima

«Onde os homens fecharam portas, Deus abriu janelas.» (Bento XVI, em Lisboa)

[20 de Maio de 2010]

sábado, 10 de agosto de 2013

Notas de Roda-pé



A resposta de Jesus faz pensar
In memoriam de Paulo Sérgio Pacheco, morto no adro da Igreja de Paredes.
A meteorologia da notícia previa o seguinte: O fim de semana 27 e 28 de Fevereiro anuncia-se com dias de tempestade em Portugal (pelo que ouvi só a baptizaram quando chegou a França, Xynthia). Preventivamente, desmarcaram-se muitas actividades.
Os factos da notícia dão conta do seguinte:
Nesse fim de semana em Portugal a Xynthia derrubou 2500 árvores. Em França matou 50 pessoas; em Portugal uma, um menino de 10 anos. Morreu em Paredes, no Adro da Igreja Paroquial. Chegada a hora o pai acompanhou-o à catequese. Havia uma caminhada programada, mas o tempo não estava para aí virado; por isso ficaram na igreja para visionar um filme. Antes da catequese e com o pai por ali, o menino jogava à bola que saltou mais que a conta — o que é natural, pois até a bola do mundo salta mais que a conta nas mãos dum menino! E foi parar junto duma tília centenária onde o Paulo correu a buscá‑la. Entretanto, um enorme ranco de tília saudável caiu e caçou-o. Desprevenido e inocente. Nenhum dos presentes, nem todo o desespero e amor juntos conseguiram erguer o enorme ranco. O menino esvaiu-se e morreu perante impotência de todos. Morreu no adro da igreja, quando, como qualquer reguila, brincava inocentemente, esperando para entrar na catequese. O estupor revoltado dos presentes, dos familiares e dos que vieram a chorar a tragédia, declarava, com e sem palavras, com e sem lágrimas, que uma igreja não é lugar para se morrer tragicamente.
Uma definição de infância é o acumulado em gérmen de todas as esperanças. Um menino aos dez anos poderá vir a ser um bombeiro, um chopin, um van gog ou um missionário. Por isso dói mais a dor duma morte assim tão fim dum tesouro enorme de esperanças!
Dói-me a morte do menino reguila. E dói-me a dor da família açoreana cuja casa esbarrondou encosta abaixou, e a dor das famílias madeirenses, e das chilenas, e das turcas, e das do Haiti, e das. E hão-de seguir doendo‑me muitas outras dores. Umas que a natureza não perdoa, outras que os homens infligirão a outros homens. Mas doer-me-ão sempre mais as inocentes.
O Evangelho da Missa do domingo terceiro da Quaresma (Lc 13:1-9) informa-nos que uns desconhecidos comunicaram a Jesus a horrível notícia da matança duns homens galileus no recinto sagrado do Templo. O autor da matança foi o óbvio Pilatos. A indignação alastra entre a população, porque o sangue dos homens chacinados se juntara ao dos animais sacrificados a Deus. Mas, porque comunicaram essa informação a Jesus? Sinceramente não sabemos. Mas sabemos a resposta: Jesus responde recordando outro acontecimento trágico, a morte de dezoito pessoas esmagadas pela queda dum torreão da muralha próximo da Piscina de Siloé.
Vejamos: em ambos acontecimentos trágicos Jesus declara que as vítimas não eram mais pecadores que os que ficaram vivos, e acrescenta a mesma advertência: «Se não vos converterdes, morrereis da mesma maneira».
A resposta de Jesus faz-nos pensar. Jesus recusa sem mais que as desgraças sejam castigo de Deus.
(E não é isso que pensa a gente com fé e sem fé? Não é isso que pensaram os de Paredes quando lhes morreu um menino inocente, que andava a jogar à bola: Que Deus o teria castigado, ou por ele a sua família e comunidade?)
Não, Jesus não pensa que Deus, o Bom Deus, seja o Homem do Fraque, ou um justiceiro que anda pelo mundo castigando os seus filhos, semeando doenças e tragédias por aqui e por acolá. Deus não paga o mal com o mal. Deus não serve a frio taças de licor-maldade a nós pecadores!
Não, também não. Jesus não é filósofo. Ele não disserta sobre a origem do sofrimento nem proclama nenhuma teoria do mesmo. Não nos amarfanha nos nossos medos. Não confirma a culpa das vítimas nem acentua a vontade de Deus. Jesus não tem medo de olhar olhos nos olhos os homens que O confrontaram, e de lhes propor a sua leitura destes acontecimentos: através deles Deus chama-os à conversão e à mudança de vida.
Ainda nos lembramos bem do terramoto do Haiti, do esbarrondamento da Madeira e do terramoto do Chile. Como poderemos entender estas tragédias (e a morte do Paulo Sérgio) desde Jesus? Como nos ensina Jesus a lê-las? Assim: A pergunta certa nunca é «—Onde estava Deus naquela altura?», mas onde estamos nós. Aquilo que nos pode pôr a caminho da conversão não é perguntar por que permite Deus esta ou aquela tragédia, mas porque permitimos nós (e ainda mais os decisores) que tantos, e sobretudo os pobres, permaneçam indefesos perante a natureza!
O Pai do Crucificado encontramo-lo na identificação com as vítimas; o protesto contra a sua indiferença ou a negação da sua existência não nos leva ao seu encontro. Mas a luta contra a dor do mundo sim. Só então, de olhos e alma lavados, por entre luzes e sombras, poderemos entrever a Deus sofrendo com as vítimas e alentando os que se cansam na reconstrução dum mundo melhor.
(E na minha fé entrevejo-Lhe, condoídos, os olhos marejados de lágrimas salgadas pela familiaridade com as dores humanas; pelas dores da família do Paulo Sérgio, de Paredes; pelas dores da família do Leandro Pires, de Mirandela. Na minha fé sei que o Pai Bom Deus tem preparada uma bela bola saltitante para jogarem juntos, até ao fim, por entre árvores, e numa jubilosa sinfonia de vitória de quem sabe que já não há derrota a temer. Se choram os pais, já não choram os meninos. Na minha fé entrevejo uma partida de futebol no Céu: ambos são companheiros de recreio. Muda aos cinco, acaba aos dez… Aos dez mil! Oh, eterno recreio!)

Máxima
«Deixai vir a mim os pequeninos.» (Mt 19:14)

Mínima

«Sempre que o homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos duma criança (António Gedeão)

[10 de Março de 2010]

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Notas de Roda-pé


«— Olhe e já agora, veja lá se manda para ontem o seu artigo». Foi assim, de rajada seca e certeira que recebi a sentença para novo artigo, «porque o Jornalinho tem de chegar cedo a casa dos peregrinos!» Seja. Que por mim nenhum peregrino há-de chegar atrasado.


Santos impopulares
Chega Junho, chega o Menino. Digo, a peregrinação ao Menino. É também o mês, dizem, dos santos populares! Curioso nome o de santos populares que, talvez, não inocentemente, estabelece a divisão com os outros, os não-populares. Pelo contrário, não deveriam existir senão santos, santos populares. Mas já que criaram a designação deixem-me que discorde dela. Os Santos Populares são santos visivelmente impopulares! Vejamos.
S. António, dizem-no de Lisboa, os portugueses; e de Pádua, os italianos. Paulo VI foi mais consensual e chamou-lhe António-de-todo-o-mundo. O nome verdadeiro era Fernando de Bulhões, nasceu em Lisboa e morreu em Pádua. Celebra-se a 13 de Junho e foi um pregador. Impressionava pela palavra, fustigava as consciências, era um intelectual de grande craveira. Quando o não quiseram ouvir — isto é, levar à prática a sua pregação — foi pregar a peixes! Esses tinham pelo menos uma virtude: ficavam calados enquanto pregava! Já que não converteu os homens dedicou-se aos bichos!
S. João nasceu em Ain-Karim, Palestina. Mereceu o nome de Baptista por ter baptizado o primo, Jesus, e as enormes multidões que se aproximavam de si. Celebra-se a 24 de Junho. Era seis meses mais velho que Jesus. O seu nascimento foi uma alegre bem-aventurança para a família, mas deve ter deixado muito cedo o lar e para ir viver no deserto. Era austero no viver, e fustigava a sociedade do tempo como se as víboras habitassem as suas casas. Denunciou a hipocrisia do rei do tempo e como prémio Herodes ofereceu a sua cabeça num prato, a uma bailarina cujo bailado o encantara. Arrastou multidões, avivou as brasas da esperança, mas morreu ingloriamente, desamparado e à mercê da iniquidade do poder ao tempo.
S. Pedro celebra-se no dia 29 de Junho e com ele Paulo. Não é certo que tenham morrido no mesmo dia, embora haja quem o diga. Popularmente só se referencia o primeiro e só se festeja o primeiro. Pedro foi o primeiro chefe da Igreja de Jesus. Era um pescador bruto, rude e impulsivo. Era imponderado e belicoso. Estava mais habituado a tratar com peixes que com homens. Falava sem pensar e sonhava demasiado elevado. Quando teve de defender o sonho (porque lhe prendiam o Mestre) foi o único a deitar mão à espada. Mas só cortou uma orelha, que o Mestre logo repôs! Já entronizado chefe da Igreja reserva-se demasiado para dentro da comunidade, ao ponto de Paulo ter de o enfrentar para ganhar espaço e liberdade a fim de se dedicar a anunciar Jesus aos não-judeus. Por fim, deu a vida por Cristo, mas como nem disso se julgava merecedor pediu para ser crucificado de cabeça para baixo. Parece-se muito a um santo impopular e ao contrário.
São Paulo era rabino judeu, fariseu radical, evangelizador de helenistas, cidadão romano, escritor exímio, missionário incansável, fundador de comunidades, pastor dedicado, fabricante de tendas, Apóstolo de Jesus. Foi tantas coisas que parece não ter tido tempo para sardinhas, pimentos e pão. Também não é por aí que é um santo popular. Era homem de amizades sinceras, profundas e exigentes, daquelas que magoam por que muito amarram ou muito dividem. É convertido, melhor dito: um zeloso homem de fé radical que se converte ao Cristianismo. Mistura explosiva que fazem dele um homem frenético sem tempo a perder. A urgência era a sua marca, tão urgente que parecia impaciente. A sua personalidade forte, a vontade férrea e a defesa da fé verdadeira chegaram a deslaçar amizades. Não parece e não é um santo suave, ameno, popular. Com a sua festa neste ano, iniciamos o jubileu bimilenário do seu nascimento.
António, João, Pedro e Paulo são santos impopulares que o coração do povo ama. São muito impopulares e muito contra-corrente aos apetites do povo. Sim, são do povo. São nossos. Mas são tão fiéis a Jesus que parecem avessos ao que o mundo hoje consome. (E nesses dias quase só consome sardinhas, pão e vinho!) A culpa não é deles, é da radicalidade de vida exigida por Quem os chamou. São impopulares porque se abriram a Jesus. Mas porque se abriram de forma tão bela à fonte da alegria, teríamos de fazer festa quando os festejamos. E fazemos. Mas ainda que os convoquemos para a festa a sua impopularidade é como o vinagre, que apesar de sadio tempero e benéfico purificador, recordámo-lo mais por não caçar moscas.

Máxima

Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. (São Paulo)

Mínima

Paulo, apesar de grande, submeteu-se a Pedro para que essa fosse a regra dos séculos futuros. (Bossuet)


[ 24 de Abril de 2008]

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Notas de Roda-pé


Um sorvo
Era um encontro de jovens, em Agosto, em Segóvia, no convento de S. João da Cruz. Ali os dias são quentíssimos, a paisagem é de restolho ressequido; os corvos grasnam o dia todo por cima da Igreja da Senhora de la Fuencisla. São tantos e tão insistentes que quando se calam, nos sentimos melhor. Em chegada a noite também ficamos melhor, porque a temperatura amaina.
Nesse dia de que quero falar saímos enquanto o sol era meigo. Calcorreamos caminhos de pó por entre restos de searas e de campos enormes. Parámos bem antes do meio-dia, bem antes do sol queimar. Parámos sob as únicas árvores que se viam por ali. Mas antes de merecermos almoçar, reunimo-nos à volta dos textos de S. João da Cruz. E como é diferente lê-los naquela terra quase só terra, quase só céu!
Passámos ali a tarde. Chegámos por fim a casa cansados e suados, com os corpos a suspirar por um banho. Antes da ceia, porém, estava prevista uma hora de oração. No meio da frescura da capela depuseram uma vela no chão e uma tina de água.
Quero lembrar que entre nós havia um catalão, de 17 anos, que ninguém sabia ao que viera. Estava ali tão deslocado como um peixe a apanhar banhos de sol. Não sabia nada daquilo. Não sabia nem rezar nem o que era um convento nem porque tínhamos de nos juntar a horas certas e fazer tudo junto. O nome, julgo, era Rufo. Apesar de destoar Rufo era simpático, embora quase só falasse de bebedeiras de vinho!
Foi também à oração, que começou e foi decorrendo junto ao Poço de Jacob, onde Jesus se encontrou com a Samaritana e lhe pediu de beber; onde Jesus foi remoçando o coração ressequido daquela mulher, acabando ela a pedir-Lhe: — Dá-me, Senhor, dessa água!
Era assim entre cânticos, o Evangelho e os apelos da Santa Madre, que ia decorrendo a oração. Ali, se traçava o itinerário de fé que cada um de nós deve percorrer: Jesus aproxima-se. Depois é reconhecido e acolhido como a única água que pode matar a nossa sede.
A certa altura, foi cada um de nós até junto da água e só tinha que fazer aquilo que quisesse fazer: mirar, tocar, santiguar-se... Havia um cântico: — Dá-me, Senhor, dessa água. O cântico ia correndo e a fila andando, e à medida que cada um se aproximava da água cumpria o ritual. E regressava ao seu lugar.
Rufo foi o último. Todos vimos como se tardou diante da água. E nós cantando. Ficou ali, imóvel, impressionado, resoluto. Depois, ajoelhou e deu um grande sorvo antes de lavar a cara. O cântico parou mas ali deve ter nascido um santo, pois no restante do encontro o rapaz já não foi mais igual!
(Ignoro o que posteriormente se passou com a vida de Rufo; se ficou a gostar mais de vinho ou de água. Mas o que é certo é que se naquela tarde não foi tocado pela sede de Deus, fomo-lo nós perante o seu gesto tão inesperado.)

Desaparecida
Encontrei algures uma notícia e fiquei olhar para ela. Como quem vê um boi a olhar para um palácio. Um boi não sabe distinguir uma janela duma porta, o frontispício do telhado, uma estátua duma floreira. Para o boi aquilo é um palácio ou lá o que é, mas como não se come não é nada. Fiquei mais ou menos assim quando li uma notícia sobre o roubo duma ponte. Uma notícia assim não parece o que é, e deixa-nos incrédulos. Eu fiquei. Olhava para as letras e via-as juntas e ordenadas, formavam um texto que era uma notícia, ou brincadeira. Dei por mim a pensar: é daquelas notícias papa-tolos, bem escritas mas sem sentido! Seja. Mas seja o que seja vou trazê-la para aqui.
Os conteúdos eram estes: Na República Checa, entre os inícios de Dezembro e meados de Janeiro deste ano roubaram uma ponte. Era uma ponte de aço, ali disposta para unir duas cidades. Não era um viaduto qualquer, era mesmo uma ponte e pesava 4 toneladas. (Um carro pesa uma e meia!)
As pontes são para mim das construções mais interessantes. São como as vitórias, juntam o que andava separado, vencem abismos, unem as margens que porque o são andam sempre desavindas, fazem comunhão, fortalecem comunidades. São causa de alegria e de júbilo, facilitam a vida e antecipam os encontros.  É porque provocam união que as pontes me seduzem. Para além de me ser incompreensível como foi possível roubar uma ponte e ficar mais de um mês sem saber que fora roubada, passo a enumerar os meus outros espantos por causa desta notícia: Não foi o David Coperfield porque ele encena ilusões, não muda a substância da realidade!; Como é que duas cidades ficaram tanto tempo sem se aperceberem que estavam separadas?; Era mesmo uma ponte, ponte?, uma ponte que fazia falta? Era mesmo uma ponte que servia para o que serve uma ponte: unir?; O mais certo é ter sorrateiramente acabado na casa dum socateiro qualquer: mas poderá uma ponte de um só homem ser verdadeiramente uma ponte?

Máxima

Eu não vim por mim. (João 7:28)

Mínima

Narrei-me à sombra e não me achei sentido
hoje sei-me o deserto onde Deus teve
outrora a sua capital de olvido.
(Fernando Pessoa)

[4 de Março de 2008]