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quinta-feira, 27 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Ficção

José Romano tem 31 anos é lisboeta, arquitecto e «não gosta de aparências». Tem trabalhos diversos em Portugal e prepara-se para outros um pouco por todo o mundo. Concorreu ao concurso de ideias para o Memorial Site do World Trade Center, em Nova Iorque. Numa pequenina entrevista à Xis, à pergunta «Em ficção, qual é o seu herói favorito?», respondeu: «Jesus Cristo».
É de sempre o esforço de ficcionar Jesus. Ainda hoje, passados vinte séculos, a sua história é tão desafiadora e incómoda que é mais cómodo remetê-lo para a prateleira da ficção. Aquele Jesus de que os Evangelhos falam assusta um pouco. A alguns, pelo menos. Por isso o ficcionam. Mas a verdade é que o relato dos Evangelhos é um relato de fé, e não crónica histórica. O que ali se encontra é o que quatro homens acreditaram acerca de Jesus. E isso não é menos histórico, mas também não é tão cientificamente histórico quanto hoje se exige à história. Cuidado, porém, não ser histórico não é o mesmo que falso ou ficcionado! O Novo Testamento não é relato de história, mas da fé de quem aderiu e acreditou em Jesus. Por isso, se é certo que o Novo Testamento pode não ser considerado histórico, não é menos certo que fora do âmbito da fé existem textos que documentam a existência histórica de Jesus. São textos de valor histórico, que supõem reflexão; e textos desinteressantemente políticos e administrativos, que são apenas fruto do exercício do burocrata que ao tempo ocupou um ofício.
Jesus existiu. Isso mo diz a fé de tantos amigos, e o testemunho de alguns inimigos e indiferentes. Mas o mais interessante, é que além da sua existência real, devidamente comprovada, Ele invadiu os lugares da ficção. Assim, Jesus abarca não apenas a história (com provas, como exigem os cânones científicos), mas também a vertente ficcional (mercê de os bons ofícios de alguns, a quem dava jeito que Ele não tivesse outra existência para além desta). Ironia! Podiam ao menos reservar a neutralidade da ficção impedindo a entrada de Jesus! Mas não é que querendo remetê-l’O apenas para lá fazem com que também Ele seja de lá, e até muito significativo para quem vive lá e se deixa alimentar pelas narrações que (nos) chegam de lá?
(NB: Julgo que José Romano não é personagem de ficção. Mas nunca se sabe...)

Fado

O meu jovem amigo André da Birinha (perdoa-me, André!) mais a sua família das Guitarras de Penafiel gravou quatro fados. A restante família gravou os outros oito. O CD chama-se Grupo de Guitarras de Penafiel: vinte anos depois. O André não tem vinte anos, pelo que, no mínimo, ele é um excelente fruto que a sua família fadista deu à luz e ao fado. Vá ouvir o CD. Na voz do André-rapaz-de-camisola-verde poderá encontrar, no mínimo, uma gaivota a voar, uma fonte que seca pela saudade, um choro a cantar que Deus lhe colocou no peito para que cantasse com a sua voz que não sabe o que canta.
Eu tardei a gostar do fado. Outros, porém, parece que nasceram com o fado na alma e alma de fado. À medida que se esfumam os fumos da Revolução – e bem fazer revolução nem sempre tem sido o nosso fado... –, vamos abrindo os olhos para o que é nosso. A poeira vai assentando e vamo-nos apercebendo do que é nosso desde há muito tempo, e não pode morrer. Depois de meio perdidos e de muitas lágrimas, depois de termos destruído o passado e atropelado a memória vamos abrindo o coração para o que é raro e nos fala dos nossos avoengos. A re-descoberta do fado só é possível porque ele ficou ancorado nos que o souberam preservar. Guardiães houve que vigiaram as arcas da memória e em noites frias aqueceram gargantas, almas e corações, à medida que a agilidade dos dedos seduzia e bailava as cordas das guitarras.
E quem o agradece somos também nós os que nos cansamos de sons que não são inteiramente nossos. Cansados de peregrinações por sons estranhos vamos precisando de quem nos lave a alma da nossa identidade! E, felizmente, como ela sai lavada depois de ouvido este CD!
Não é pérola quem quer, mas quem a raridade quer. Por isso aconselho a comprar o CD. Se não sabe onde pergunte-me.
(NB1: Para que não restem dúvidas: ainda bem que houve Revolução!).
(NB2: Não se me pergunte a genealogia do fado ali cantado, que disso não percebo. Apenas percebi que gostei, e pronto...).

Guitarras

Diz quem sabe que em Alcácer Quibir, Portugal deixou no campo da fatídica batalha mais guitarras que armas! Assim mesmo! Depois da batalha o exército vitorioso correu a apossar-se dos despojos a que tinha direito. E eis que a bravura deu lugar ao espanto: eram mais as guitarras que as espadas! Portugal terá ido para a guerra – não direi como que para um pic-nic, mas com um espírito pouco convencional e até romântico. Talvez não tenha enfrentado a batalha com um plano marcial mas com alguma inconsciência própria da ousadia juvenil. É bem longa e antiga a sedução do português pela guitarra. Não há realidade que ela não cante, nem espaço em que não possa entrar. O que serve para cantar a alma portuguesa serve para a cantar toda e em todo o lugar. Seja no campo de batalha ou num casamento, seja no Bairro Alto ou nas caravelas do Navegador, seja nas serenatas à namorada ou para cantar ao Divino, seja nas desfolhada ou no fim duma caçada. Onde houver português haverá guitarras, guitarradas e fado, e não sou eu quem o diz.
É por isso que eu olho para as Guitarras de Penafiel com muito carinho e respeito. De alguma maneira são herdeiros dos que pereceram ao lado de D. Sebastião, mas também dos que triunfaram com o Navegador!
Neste tempo de batalhas novas escasseiam as espadas e rareiam as guitarras. E talvez seja desta que nos devamos defender (ou atacar?) e vencer com o que outrora nos fez perder: a música, o fado e as guitarras.

Monte
Os cimos dos montes são bonitos para lá se colocar qualquer coisa. E uma cruz é o que melhor lá se pode colocar. Afinal, Jesus morreu num monte e cravado numa cruz.
No programa Mais Europa, da Antena 1, fiquei a saber que na Ucrânia há uma Monte que é para os ucranianos o que para os portugueses é Fátima. Quem peregrina a Fátima vai e acende uma vela; quem vai ao Monte das Cruzes coloca uma cruz.
Ao longo dos séculos os ucranianos subiram o monte e colocaram cruzes, grandes e pequenas, por este e por aquele motivo, deste e daquele feitio. Algumas cruzes são tão grandes que sustentam muitas outras cruzes mais pequenas.
O Século Vinte Soviético derrubou ali muitas cruzes, mas não travou os passos de quem ali peregrinou para repor cruzes no lugar das derrubadas. E plantar outras que a devoção impunha.
Em 1983, reconhecido, João Paulo II peregrinou ali para abençoar aquele povo, a sua identidade e memória, o seu futuro e esperança.
Sempre houve quem sonhasse unir a Europa do Atlântico aos Urais. Está quase a conseguir-se. Num pólo está a Cruz, no outro a Luz. Num o Senhor da Cruz, no outro a Senhora da Luz. Podem os senhores do poder europeu não querer saber das raízes cristãs da alma europeia. Por desconhecimento ou descaramento podem ignorá-las ou rasurá-las. Que o façam. Em qualquer dos casos, deveriam saber que antes do cifrão ou do euro já a cruz alcançou o que peroram há tantos séculos.

1’ de sabedoria

Ou te renovas ou morres. Para renovar o teu interior, interroga-te sobre as qualidades que deves fortalecer e os erros que deves emendar.
Não cuides em emendar ou corrigir os teus limites, pois eles sempre te acompanharão. Querer corrigir os limites é destruir a natureza humana. Os limites aceitam-se e amam-se. Só devemos educá-los e orientá-los, para que sejam sempre construtivos.

Identifica as tuas qualidades e cultiva-as, identifica os teus erros e corrige-os: assim estarás renovando o teu interior.

[23 de Setembro de 2003]

terça-feira, 25 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Claraval
A vinte e cinco quilómetros de Coimbra fica Lorvão onde pontifica o seu mosteiro. Neste Verão visite Lorvão, que é uma boa oportunidade de ir para fora cá dentro. Lorvão foi mosteiro que seguiu a Regra de S. Bento, e depois, mais tarde, a de S. Bernardo. Que encanta em Lorvão? A mim, o facto de me parecer um pequeno Claraval, ou Clairvaux, melhor dito.
Quando S. Bernardo reformou os cistercienses, abandonou Citeaux abraçando uma pesada cruz de madeira. Após uma longa marcha o abade Bernardo deteve-se num vale ameno e bem protegido, bom de águas, luz e ares, a que deu o nome de Claraval.
Durante muitos anos desejei conhecer Claraval, e durante mais anos me inquietei por conhecer Lorvão. Conheci. Não será certamente comparável a Claraval, mas um texto quinhentista descreve-o como um profundo vale aberto de soutos coberto. Lorvão é claramente claraval. A água abunda, o verde também. O clima é ameno, e a luz... a luz convida à saudade. O mosteiro aparta-se da povoação por uma ribeira que risca a separação, deixando dum lado jardins e do outro as ruelas medievais.
Não é só o clima, a paz e serenidade que em Lorvão nos falam de luz, e nos chamam a saborear este pequeno claraval. Ali brotou a dedicação a Deus e à Humanidade. Naquela clara luz ainda tremeluzem e ecoam os salmos e os cânticos de monges e monjas, a mestria da pena de muitas monjas, a música do órgão e do cravo, as iluminuras dos preciosos códices e incunábulos que hoje enriquecem bastos museus de Portugal.
A sanha dos liberais e a ferocidade de procuradores e credores cerraram uma cortina negra sobre o claraval português. Onde houve luz ganhou raízes a negra fome e a decrepitude. Mas ainda há luz em Lorvão. E vale a pena ir lá ensaiar o olhar e a alma em fulgores  e matizes que jamais se encontram em outros vales. Vale mesmo a pena.

Prisão
Os juízes de Sabadell, Espanha, tomaram uma iniciativa inovadora. Propuseram que os jovens delinquentes, entre os 16 e 25 anos, pudessem redimir as suas penas relativas a crimes não graves, percorrendo o Caminho de Santiago. Quem for condenado a penas inferiores a três anos poderia redimir-se fazendo o caminho e dedicando-se ao seu cuidado e conservação.
A proposta foi bem recebida pela sociedade espanhola. E tem pelo menos uma virtude: considerar que todo o ser humano — mais ainda os jovens! — pode remir as suas penas de forma positiva, ressarcindo a sociedade e (re)fazendo-se como pessoa. Na verdade, a origem do Caminho de Santiago é exactamente a remissão das penas e o acertar de contas com a justiça. Foi assim que se começou a peregrinar a Santiago. Caminhava-se desde toda a Europa, confluindo para Compostela, em busca do perdão para os pecados. Caminhava-se para mudar. Mudava-se de lugar e a geografia da alma. Muitos foram os que caminhando deram terras novas a almas mesquinhas que os habitavam. Somos herdeiros destes peregrinos da geografia espiritual compostelana. Que também os jovens delinquentes espanhóis possam peregrinar, buscando-se a si mesmos, é o reconhecimento de que os espíritos de época alguma não se agrilhoam, e que a ascese corporal é alavanca de mudança.

Fogos
Os incêndios assaltaram as televisões. À falta do melhor noticia-se o pior. Sempre assim foi. Não acredito que alguém tenha visto tudo, tenha testemunhado tudo. Contaram-me que o Canal Um, no telejornal do passado dia 8 de Agosto, contou a seguinte história: uma velhinha – como tantos outros – chorava a sua impotência perante o fogo que lhe levara tudo e a deixara com um punhado de terra queimada. A velhinha chorava e a câmara filmava. Então, a jornalista entrevistou a senhora. Mas a mulher, que não tinha forças para chorar, respondia com espantos e monossílabos. Mas a zelosa profissional não desistiu e atirou a matar: «Está zangada com Deus, não é minha senhora?». Oh! Que maravilhosas inquietações ocupam os cérebros dos nossos jovens jornalistas! Obviamente que até contra Deus a senhora poderia estar. Tinha razões para isso! Acaso saberá a jornalista o valor do punhado de terra queimado?
Mas o que surpreendeu foi a resposta da idosa, que stopando os soluços e raivas declarou: «Não menina. Não estou zangada com Deus, não. Ele até é meu amigo.». E a senhora jornalista ficou calada, sem palavras, muda. Ainda deve estar a refazer-se.
Eu acredito que vale a pena abrir a televisão. Mesmo sem querermos, mesmo sem contarmos, onde menos se espera, quando todos promovem o contrário, aparecem testemunhos de humildade e de fé. E incêndios queimando preconceitos de jovens mentes inquinadas antes de tempo.

Comer
Há algo que me incomoda no comer. Digo, no comer sozinho. Preciso melhor: em certas reportagens que vejo nos jornais. Jornais há que para encher as páginas quentes do Verão, nos mostram as habilidades culinárias de certas figuras públicas. Até aí tudo bem. Mas há uma coisa que eu não percebo. Por que razão é que alguns se dão ao trabalho de nos dizer que sabem cozinhar? Um jornalista mostrou saber alguma coisinha da arte cozinhando uma massa de camarão. Óptima, pelos vistos. Eu só não percebo porque a quinta das fotografias, a última, o mostra a comer sozinho? Porque será. É certo que os tempos que correm nos forçam a comer sozinhos. Cada vez mais comemos menos juntos. É sina dos tempos concerteza, mas o melhor condimento duma comida é a companhia.
Já não sabemos comer, ainda que cada vez mais saibamos cozinhar melhor. A que saberá uma boa comida comida na solidão. A que saberá comer isolado? É sem dúvida importante saber cozinhar, saber como se faz; mas é mais importante saber parti-lo, comungá-lo com.
Que adiantará a arte se ninguém a usufrir? Será que é legítimo que o artista devore a sua arte sem que possamos apreciá-la, ou nos limitemos a ver comê-la? Tempos raros estes, sem dúvida! Da comida fazemos arte, e depois só temos arte para a partilhar com a câmara do fotógrafo!

1’ de sabedoria
Certa senhora queixou-se ao mestre de que o dinheiro não lhe trouxera qualquer felicidade. O mestre respondeu.

– Pelo que diz, julga que o luxo, o conforto e o prazer sejam ingredientes que se misturam para fazer a felicidade... No entanto, minha filha, tudo de que você precisa para ser feliz é entusiasmar-se por uma causa qualquer.

[26 Agosto de 2003]

domingo, 23 de junho de 2013

Notas de Roda-pé



Férias

Férias são férias. Na praia a trabalhar para o bronze vou entabulando um diálogo a meias com o mar e um livro sobre o invisível. Perdido das horas ouço um sino. Não fui o único. Desde algures, o sino que se fez ouvir na praia sustém as guerrilhas de três garotos transmutados em cóbois intergaláticos e impõe um armistício sem condições. Correm para a mãe e perguntam-lhe por que toca o sino. Muda a mãe, responde a avó: «são as Trindades, filhos». E lá fica a velhinha embrulhada em memórias catequizando os netos.
É isso. As férias supõem também tempo para Deus, para a pausa e a interrogação. Corre-se um ano inteiro, mas as férias dão-nos tempo para irmos a uma capela, para peregrinarmos ao santuário interior da nossa consciência, e até para ouvirmos um sino e construirmos a paz. São tempo para encontrarmos Deus na natureza e nas suas criaturas, para o silêncio e a leitura, para a família e o diálogo, para o convívio e o estar com Deus.

Missão

Como evangelizar hoje na cidade? É a pergunta a que procuram responder os Congressos Internacionais sobre a Nova Evangelização. Em Viena experimentaram-se respostas e provaram-se testemunhos. Ou como alguém disse, partilhar a Missão e fazer a Missão.Vivemos um tempo plural, com muitas periferias e margens. E na Igreja falta muito a consciência que fora das sacristias e dos altares há muita gente à nossa espera! Como responder às perguntas dessa gente de boa vontade, mas que não vem à igreja? Ora bem, se essa multidão de gente não vem à igreja nem identifica o “produto” da Igreja, que fazer? É fácil, vá a Igreja para fora da igreja! E foi. Pelo menos no Congresso. Na rua os congressistas abordaram as pessoas e falaram daquilo que as (co)move: Jesus! No ponto alto do Congresso — ou num dos mais altos — o P. Guy Gilbert narrava histórias de delinquentes juvenis com quem trabalha em Paris. A meio da conversa virou-se para o findo da plateia e diz: — «Cristovão (o bispo de Viena), vem aqui». E o bispo foi. O contraste era grande. Guy usa cabelo grande, casaco de couro e calças de ganga coçadas. Cristovão é um cardeal tal qual o imaginamos. E o Padre rematou: — «não temos o mesmo visual, mas somos a mesma Igreja!». E a catedral quase veio abaixo com os aplausos. Como evangelizar hoje na cidade? Em Viena coexistiram a ganga e as vestes dos dignitários; os franciscanos do Bronx cantando rap e os padres com cabeção; os órgãos de tubos e as violas e batuques; o latim e o vernáculo; o gregoriano e gospel. Como evangelizar hoje na cidade? «Não sabemos, disse o Bispo Auxiliar de Paris, mas sabemos que o temos de fazer». 

100ª

O Papa acaba de realizar a sua centésima viagem apostólica fora de Itália, à Croácia. Bem, na verdade já realizou a centésima primeira (recentemente a Espanha), e prepara-se para a 102º! Notável. É o Papa mais peregrino da história. Visitou 129 países, alguns várias vezes. Esteve em 614 locais, pronunciou 2399 discursos, passou mais de ano e meio em viagens, percorreu um milhão cento e sessenta mil quilómetros, isto é, deu onze vezes a volta ao mundo!
No dia da sua eleição o Papa sentiu o apelo de Jesus: «Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a todas as criaturas». É isso que João Paulo II tem feito. Imitando a Pedro tem ido até onde as forças o levam para dizer a cada homem e a cada mulher que Deus o ama, que a Igreja o ama, que não tenha medo!
No México diante de milhões de Católicos ou no Arzebeijão com os 120 existentes, o Papa celebrou missa com a mesma intensidade de peregrino incansável. Por uns e por outros gasta a sua vida e esgota as suas forças até ao fim, por que é urgente dizer a todos os irmãos: «não tenhais medo. Abri as portas a Cristo».
Qual é a eficácia de tantas viagens, vigílias, missas e discursos? Não sabemos, e o Papa parece não se preocupar com isso. Basta-lhe semear.

Jubileu

Brevemente, a 16 de Outubro, ocorrerá o 25º aniversário da eleição de João Paulo II. Eis é um dos mais longos pontificados da história do cristianismo! Nesse dia reunir-se-ão em Roma todos os Cardeais da Igreja, para celebrar em júbilo uma data histórica que a todos nos alegra. João Paulo II é sem dúvida um saboroso dom do Espírito Santo à sua Igreja. Inovador e fiel, encorajador e leal, corajoso e resistente, orante e intrépido, contemplativo e peregrino! Um Papa assim merece bem o epíteto de «Pastor das multidões» e o nosso gozoso júbilo.

1’ de sabedoria
Um dia chegou um visitante e apresentou-se diante do Mestre. Era, disse-lhe, um homem à procura da verdade. O Mestre respondeu-lhe:
— Se de facto, é a verdade que procura, há uma coisa que na vida você deve ter...
— Eu sei, disse o homem, uma paixão inultrapassável pela verdade que procuro.

— Não, respondeu o Mestre. Deve ter uma prontidão lúcida e atenta para admitir que pode cometer erros.

[30 de Julho de 2003]

sábado, 15 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Cóbói
Há um filme-documentário que se chama Bowling for Columbine. Foi realizado por Michael Moore. Pouco mais sei do filme. Ver não o vi, e pouco li sobre ele. Do que sei o que mais me prende é a fotografia que acompanha a promoção do filme. A fotografia mostra um homem, forte, com uma barbicha rala, óculos à Spilberg, boné à beisebol. Deve ser o realizador, mas não sei. O homem sorri, e parece dizer: «apanhei-vos, não?».
Falta dizer que o homem tem ao ombro uma câmara de filmar, na mão direita; e ao ombro também uma carabina, na mão esquerda. «Apanhei-vos, não», parece dizer enquanto sorri.
Vou dizer-vos o que me faz lembrar a fotografia. Lembra-me um cowboy. Sim, um cóbói dos filmes. Daqueles que no duelo final tem as duas únicas armas e sabe que vai ganhar, que vai matar o adversário («Apanhei-vos, não?»). E eu imagino-me frente ao cóbói de Columbine e vou disfarçar. Vou fazer de conta que não o vi. Como não tenho armas eu sei que o seu código de honra o impede de disparar. Mas eu sei que ele me vai apanhar. E eu estou a imaginar-me apanhado por ele. Primeiro aponta-me a arma e vai pedir o meu testemunho («O que é que o senhor pensa de...»), e aí eu já tenho uma arma porque ninguém gosta de dizer que não pensa nada sobre qualquer coisa. E aí ele ficará à espera. À minha espera. Emboscado. E eu estou a imaginar-me a tentar protelar... E estou a vê-lo a apontar-me a carabina e a dizer-me: «vai disparar ou não para a câmara?...». E eu ainda não sei se vou.
Pois, pode ser ameaçador; posso ser maçador. Mas o homem da fotografia do filme parece-me o cóbói que sabe tudo e que vai ganhar o duelo. Sinceramente, apetece-me deixá-lo ganhar, não ter opinião nenhuma para dar.

Reportagens
Há um tiroteio?, chamam-se as televisões. Há um desconforto com a professora da escola do bairro?, chamam-se as televisões. Apareceram três pombas mortas, um grilo e uma doninha?, chamam-se as televisões. Os drogados chateiam, traficam e a polícia não faz nada?, chamam-se as prisões. As claques dos clubes assaltam áreas de serviço na auto-estrada?, chamam-se as televisões. O padre da freguesia não aceita as imposições duma comissão que não vai à missa com o pároco?, chamam-se as televisões. Os ucranianos beberam os copos a mais e andaram à navalhada?, chamam-se as televisões.
É impressionante! Se não houver televisão parece que não existimos. Porque se existimos é impossível não nos verem na televisão.
E lá aparece o cóbói de Columbine («Apanhei-vos, não?»).

Jornalistas
Tinha eu escrito isto quando M. Sousa Tavares escreveu no PÚBLICO de 9 de Abril de Abril sobre os novos jornalistas. O título era «O massacre do jornalismo». Como fala do que sabe, do que conhece por dentro eu deixo-o falar. Há apenas uma diferença entre o que escrevi e os jovens jornalistas de que fala M. Sousa Tavares: afinal quem parece deter as armas (a câmara e a carabina) não são eles mas os interesses económicos que aparecem disfarçados sob rostos de proprietários de jornais e televisões.
Agora o cóbói é outro, mas a ameaça é a mesma («Apanhei-vos, não?»).

Por favor
Nem de propósito. No sábado, dia 10, as televisões mostraram uma louca a apontar uma arma à cabeça duma criança, sua filha. A coisa passou-se nos Estados Unidos e foi filmada durante horas. Nós vimos a arma apontada à cabeça do menino; vimos o chefe dos polícias explicar porque deram um tiro na cabeça da mãe sem ferirem o menino; e vimos o polícia (parece-me o que deu o tiro na mulher) com o menino no colo tirando-o do lugar da tragédia; e vimos o polícia ajoelhar, ceder à pressão, e implorar que os jornalistas se afastassem e não o ameaçassem com as suas armas letais, as câmaras.
Definitivamente esta guerra civil está complicada. Não podemos viver sem ela, e vendo-a impassíveis e sem critérios estamos a alimentar o monstro!
Por momentos o cóbói foi o polícia, mas depois o jornalista foi outra vez cóbói e atirou-se ao polícia e ao menino («Apanhei-vos, não?»).

1’ de sabedoria
Havia regras no mosteiro,
mas o Mestre vivia prevenindo os seus discípulos
a que estivessem atentos
contra a tirania das leis!

A obediência observa e guarda as regras, dizia ele,
e, acrescentava logo depois:
mas só o amor sabe quando se deve quebrá-las.

[20 de Maio de 2003]

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Testemunho
Francisco nasceu no Vietame. Escolheu ser padre e aos 47 anos era bispo. Pouco depois foi preso e encarcerado na prisão de Cay-Vong, sob a acusação de fazer parte do Vaticano.
Passou treze anos na cadeia, dos quais nove completamente isolado e vigiado por dois guardas. Suportou a tribulação, diz, graças à oração da Igreja que o julgava morto. À porta colocaram-lhe um altifalante voltado par ao interior da cela. Das cinco e meia da manhã às onze e meia da noite o altifalante vomitava-lhe a doutrina marxista.
Era um bispo jovem, isolado e com ânsias de apostolado. Que fazer? Havia na prisão um menino de cinco anos. Cuang era cristão e o bispo recomendou-lhe que dissesse à mãe para lhe comprar ‘calendários velhos’ que lhe chegaram nesse dia à noite envoltos em escuridão. E durante dois meses o bispo Van Thuân escreveu aos seus fiéis mensagens que eles copiavam das folhas do menino e depois distribuíam. Mais tarde obteve licença para escrever mais livremente e receber um remédio para o estomâgo. Passou a receber de quando em vez um ‘remédio estomacal’ que mais não era senão vinho! Pouco depois chegou-lhe outro ‘remédio’, hóstias! O bispo já podia celebrar eucaristia!
Às 21h30 todos eram obrigados a dormir. Lado a lado consigo, numa esteira de meio metro de largura, conseguiu que dormissem cinco cristãos. Então, enquanto os outros dormiam os cristãos celebravam a Eucaristia. O bispo vertia três gotas de vinho na mão e uma de água, e sobre o peito colocava as hóstias! Depois rezava a missa que sabia de cor! Seguidamente metia as hóstias em saquinhos feitos a partir de mortalhas de cigarro, e quando na manhã seguinte era obrigado a participar na catequese marxista aí mesmo distribuía Jesus.
O bispo perdera a sua diocese, mas na diáspora da prisão ganhou uma comunidade. E embora privado da liberdade seguia pastor de espíritos em peregrinação de santidade. Por que Jesus não esquece nem olvida jamais alguma das suas ovelhas!

Menino
Contaram-me que a televisão também dá boas novas. Algures uma médica pediatra reformou-se. E fizeram-lhe uma festa de despedida. Imagino que mamás jovens e menos jovens, filhos e netos foram à festa. Melhor, imagino terem sido elas e eles que lhe ofereceram a festa. Conta quem viu que lhe ofereceram presentes.
Por vezes, quem mostra não mostra a festa toda, por isso quem viu conta que viu que lhe ofereceram uma imagenzinha do Divino Menino Jesus de Praga. E eu acho que essa é uma prenda linda que no mínimo diz três coisas: diz que aquela é uma gente agradecida e que mostra em gestos o bem e atenção que recebeu; e diz que aquela é uma gente sábia, porque que prenda melhor se pode oferecer a uma mulher que cuida dos nossos meninos senão um Menino Jesus? E diz ainda que aquele povo sabe bem que Deus também cuida de nós. Isto é, quando doentes socorremo-nos da sabedoria e inteligência dos médicos para nos curarmos ou nos curar os nossos filhos, e quando meninos precisamos dum mestre que nos ajude a crescer. E que melhor mestre que o Menino-Mestre? Para o bem do povo concorrem sempre os homens (técnicos, profissionais, mestres...) que servem, e Deus que é fonte de todo o bem e graça que nos ilumina, agracia e santifica. A eles e a nós.
Aquele povo soube ser agradecido à sua pediatra, e agradeceu pagando a dívida de gratidão com a imagem dAquele de quem tudo vem. Por ela Ele se manifestou como fonte de vida, graça e saúde; pelas mãos agradecidas do povo Ele se revelou a ela como gratidão e reconhecimento. Por que, de facto, dEle tudo de bom vem.

Jean
Eu previra bem não porque o conheça bem, mas porque vá conhecendo o labirinto do coração do pastor bom. Eu previra que se a guerra começasse no Iraque (e sempre julguei possível, e ainda mais desejável que não começasse) o bispo de Bagdade, Jean Sleiman, não fugiria nem deixaria o rebanho para trás. E não deixou. Ficou onde ficou o rebanho e deixou-se fustigar pelos ventos e chuvas de bombas, e-bombas, mísseis...
No caos sem nome que a guerra sempre provoca não sei que muito mais um bispo possa fazer além de rezar. E Jean rezou. E abriu as igrejas para que as pessoas nelas se pudessem refugiar durante os bombardeamentos.
Pelo menos, julgo, duas vezes falou aos jornalistas. Duma vez testemunhou que «a cidade está morta» e que a habita «um silêncio artificial»; e enviou uma mensagem «Quero dizer ao presidente George W. Bush que a guerra também prejudica quem a vence, e que a única vitória possível é a paz». E da outra vez disse aos jornalistas que escrevessem e dissessem ao mundo que rezássemos pela paz. Rezemos, pois. E que o único triunfo seja o da paz.

Florida
O bispo de da Florida, EUA, chama-se D. Robert Bowan e escreveu uma carta ao Presidente Bush. O bispo Robert é tenente-coronel e ex-combatente do Vietname. Aí integrou 101 missões de combate. Na qualidade de bispo, perito de segurança e ex-combatente escreveu ao seu Presidente. A carta denuncia, a seu parecer, a hipocrisia dos EUA que se hoje são odiados ontem foram semeadores de morte e tirania. E se o foram por que não haveriam os povos de se vingar aterrorizando quem lhes decepou os sonhos? E se a raiz do terror é essa porque não arrancá-la, não com bombas mas promovendo a paz e semeando o progresso? Porque não vão os jovens americanos, pergunta o bispo, erguer escolas e semear campos para o Iraque em vez de inquinar e hipotecar o seu futuro por muitas gerações? Porque não vão reconstruir e erguer em vez de destruir e devastar? «Resumindo, diz o bispo, deveríamos ser bons em vez de sermos maus. E sendo bons a quem interessaria que fôssemos maus e não promovêssemos o bem?».
Como perito militar o bispo Robert costuma dar conferências sobre segurança nacional. «Sempre cito aos meus ouvintes o Salmo 33, que diz:
A vitória do rei não está no seu exército
Nem o guerreiro se salva pela sua força.»
Então, a assistência costuma perguntar-lhe: «Que podemos fazer para assegurarmos a nossa segurança».
Resposta do bispo-perito militar: «saber a verdade!».
Será possível sabê-la? E que é a verdade?
É uma pergunta nunca respondida, acho eu...

Paz
Um grupo de artistas moçambicanos ofereceu ao papa João Paulo II uma cadeira. Era um cadeira original, construída com armas desactivadas. Quiseram desta maneira agradecer ao Papa o seu contributo pessoal para dez anos de paz em Moçambique.
Como o Papa é um homem de humor gostava mesmo de ver a sua cara quando se sentar na dita cadeira. E bem sei quem precisava de ali se sentar...
É caso para dizer: Mais gente se sentasse para pensar na paz, mais gente tinha horror à guerra!

1’ de sabedoria
O mestre disse a um discípulo que passava a vida a queixar-se dos outros:

– Se você deseja a paz procure mudar-se a si mesmo e não mudar os outros. É mais fácil arranjar um par de sapatos que estender um tapete sobre todos os caminhos.

[9 de Abril de 2003]

terça-feira, 11 de junho de 2013

Notas de Roda-pé

Carta

Foram poucas as vozes que se ergueram contra o Holocausto perpretado pelo Nazismo? Sim. Foram muitos os silêncios à sua volta? Sim. Porém, conheciam-se algumas denúncias e doutras havia memória, embora falhasse a sua sustentação efectiva. No passado dia 15 de Fevereiro tornou-se efectiva a decisão de abrir o recheio do Arquivo Vaticano aos estudiosos de todo o mundo. Ficou-se assim a conhecer a Carta Lacrada da conversa judia e Carmelita Descalça Santa Edith Stein. 

Ela foi uma das poucas vozes católicas que se levantaram contra o Holocausto. A sua Carta ao Papa Pio XI é uma denúncia do silêncio cúmplice da Igreja Católica. Edith nascera judia e foi fiel à sua fé. Surpreendentemente, já adulta, sentiu-se iluminada pelo encontro com o livro da Vida de S. Teresa de Jesus e converteu-se ao cristianismo. Depois de baptizada e da primeira comunhão dedicar-se-á ao estudo das Sagrada Escritura, de São João da Cruz e de Santa Teresa de Jesus. 

No dia 12 de Abril de 1993, Quarta-feira da Semana Santa, onze anos depois do seu baptismo, Edith Stein escreve ao papa Pio XI. A sua carta e a sua pessoa foram apresentadas por uma carta de D. Rafael Walzer, prestigiado abade beneditino de Beuron, seu director espiritual.

Em Roma, a meados de Abril, a carta foi entregue em mãos ao Cardeal Pacelli, futuro Pio XII. Foi portador da carta o próprio Abade Walzer. A doutora Edith aguardou resposta do Papa, especialmente a condenação pública do Nacional Socialismo de A. Hitler. Porém, de Roma o único que alcançou, muito tempo depois, foi «uma bênção para mim e para os meus próximos. E outra coisa não consegui.»
A sua carta é corajosa, denunciadora e profética. Tudo se revelou como previra. Restou-lhe acolher o martírio em comunhão e solidariedade com o seu povo perseguido. Um dia, desde o convento de Echt, na Holanda, onde se refugiara com uma irmã de sangue para escapar à garra da besta Nazi, fez um voto de martírio: «Agora que são as doze quero aceitar o martírio que me espera». Ela sabia-o e predissera-o melhor que ninguém.
A Carta Lacrada é agora Carta Revelada. Foi tornada publica no dia 15 de Fevereiro de 2003 quando se efectivou a decisão de abrir aos estudiosos de todo o mundo o conteúdo do Arquivo Vaticano.
A carta encontra-se publicada em primeira mão na Revista Monte Carmelo, de Burgos. Confira em www.montecarmelo.com. Pode também ser lida em português em www.carmodeaveiro.org.

Telélés

Os telemóveis servem para tudo, até para bater recordes como aconteceu com as mensagens natalícias dos portugueses no último Natal. Eles aproximam, dão segurança, matam solidões, criam dependências, fazem parte das modas e tendências, são irresistíveis, úteis...
Em Itália uma operadora decidiu colocar orações no telemóvel e uma outra decidiu disponibilizar versículos da Bíblia. Fantástico! Uns calam Deus, outros põem-no a falar. Uns fecham-lhe a porta, outro a abrem-lhe os telemóveis. Uns retiram-no da vida, outros deixam que Ele chegue ao coração entrando por onde sempre entrou, pelo ouvido!
À entrada da minha igreja um colaborador mais piedoso decidiu promover celebrações mais pacíficas sem ser assaltadas por pela dita praga. E no placard lá apareceu a mensagem zelosa: «Deus ainda não se comunica por telemóvel. Desligue o seu p. f.». Parece que se enganou. Afinal comunica-se mesmo...

Semente
S. Teresinha esteve de visita ao Iraque. Chegou a Bagdade no dia 20 de Novembro de 2002, precisamente no mesmo avião em que chegavam os inspectores da ONU. No dia 27 de Dezembro deixou o Iraque. Durante o mês que visitou o país as suas relíquias foram veneradas em 58 igrejas ou lugares de culto repartidos por Bagdade, Mossoul, Ninive e Kirkuk.
No fim da visita o bispo Jean Sleiman escreveu uma carta. Nela diz que Teresinha fora recebida como uma palavra de paz para um povo ameaçado pela guerra. Quando as suas relíquias partiram o povo iraquiano ficou sentido, mas continuava a senti-la presente como um ciciar de esperança e paz interior.
Tal como o seu Jesus ela falou de paz aos homens, embora eles apenas escutassem os tambores da guerra. A semente de paz está lançada. Haverá terra disponível que não ficará contaminada e endurecida pelo ódio e pelo terror das espingardas e das facas?

Namorados

Em dez meses vou pela segunda vez ao cinema. A cidade esta morta e fria, digo ausente para dentro de casa. Enquanto cruzo passadeiras, canais e escadas pergunto-me por onde andarão as pessoas. A verdade, porém, é que também eu não costume andar por fora a desoras. Mas nas minhas cogitações imagino-os algures entre sebentas e TPC’s, entre constipações e depressões, entre o elo mais fraco da TV e a operação triunfo da Internet. Cruzo de ponta a ponta todo o centro comercial e nada. Vêem-se pouquíssimas pessoas nos restaurantes salvo... salvo numa loja que está cheia de adolescentes. Penso: deve ser dos saldos! Volto a pensar: mas era uma loja de bugigangas! Repenso novamente: pois, amanhã é dia de namorados!
Dou um passo atrás e de relance todos os bonecos me parece fofinhos; o vermelho é todo igual; o feitio tem tudo de pouco criativo: o do coração. Mas amanhã é dia de namorados. Será, penso resignado, parece-me, um dia com pouca originalidade. Todos os bonecos serão fofos, vermelhos ou com fitas vermelhas e todos soletram: amo-te!
Mas quem disse que o amor tem de ser original? E por que haveria de sê-lo? Pelo menos a publicidade e o marketing pensam que não.
Vendam-se os dias dos pais, mães, namorados e aniversários, porque o amor é, simultaneamente, o mais e o menos vendável. Pena é que aceitemos mesmo vendê-lo em saldo e ao despilfarro.

1’ de sabedoria
Um aguadeiro transportava água do poço para a aldeia todos os dias pelo mesmo caminho, carregando aos seus ombros um pau na horizontal do qual pendiam nos seus extremos duas vasilhas de barro. Uma era nova, inteira e reluzente, e o aguadeiro olhava-a com gosto e orgulho; a outra, porém, era velha, ligeiramente furada pelo que perdia água durante aquele lento caminhar. O aguadeiro olhava a vasilha velha com pena, mas como não tinha dinheiro para comprar uma nova pensava comprá-la no ano seguinte se conseguisse poupar dinheiro.
Derreado, o aguadeiro fazia todos os dias o seu caminho sob o peso das vasilhas, procurando que seus pés descalços não escorregassem no terreno acidentado e irregular. Apenas erguia a vista para a direita e para a esquerda. Porém, um dia, no final da Primavera, parando surpreendeu-se com o que viu. Um lado do caminho estava seco e poeirento, enquanto que o outro exibia uma longa fila de flores, desde o início ao fim.
O aguadeiro compreendeu. A vasilha furada tinha regado dia a dia esse lado do caminho; e, em resposta e com alegria, o caminho havia florescido.

[9 de Março de 2003]

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Guerra
Para além do senhor Bush há mais quem acredite na guerra ao Iraque. É o que me dizem, é o que leio. Quando as bombas americanas caírem em Bagdade a vida de um amigo meu estará em risco. Chama-se Jean Sleiman e é o bispo Bagdade. O Iraque tem 270.000 católicos e Jean Sleiman é o seu bispo.
Eu não sei o que fará o bispo Sleiman, mas não é apanágio dos pastores fugir ao rebanho quando ele é fustigado. E por isso creio que Jean não fugirá. Há-de ficar ali naquela terra mártir que é a sua, que os americanos parecem odiar e cujo petróleo cobiçam. No olhar do bispo Sleiman espraiam-se dois lagos de paz. Eu sei porque já os vi. Por isso o bispo Jean não fugirá do meio daquele povo mártir.
Nunca nenhuma guerra é da vontade de Deus que aposta sempre pela reconciliação, pelo perdão e concórdia. Jean Sleiman, estou certo, ora pela paz, e, se dependesse dele, não haveria guerra porque recorreria a todos os meios para a evitar.
Dizem que a guerra vem aí, que a data já está marcada. Eu e o meu amigo Sleiman rezamos pela paz porque o americano e o iraquiano e todos os que se preparam para a guerra – para atacar ou se defender – são irmãos e filhos de Deus.
Eu rezo pela paz e só peço a Deus – como diz a canção – que o futuro (nem o presente) não me seja indiferente.

Transmissível
A rubrica Pessoal e Transmissível, da TSF, tem tudo de público e nada de reservado ou confidencial. Numa das últimas ouvi parte do testemunho de Douglas Scope cujo lema de vida é «A vida é para viver».
Desde o tremor de terra de 1985, na cidade do México, Douglas Scope já rastejou centenas de vezes (894!) por escombros de edifícios em busca de vida. Nos desastres em que participou já morreram mais de 600.000 pessoas, mas Douglas roubou algumas das garras da morte.
A catástrofe é o meio ambiente de Douglas. Ali é que ele se sente bem, porque é ali que ele realiza melhor a missão a que se sentiu chamado em 1985: salvar vidas! Para si o importante nem é viver a vida, mas fazer o bem na fracção de tempo que lhe foi dado viver. Salvar pessoas é uma experiência religiosa, diz. Ali toca-se as fímbrias da solidariedade e omnipotência divinas, ali se celebra a páscoa que resgata a vida à morte.
Desde que rasteja por entre escombros de prédios Douglas já viu de tudo. E o que mais o toca é que nunca deixou de ver a Deus. Ali em baixo, ali onde mais ninguém ousa entrar, ali no escuro e na destruição é que ele vê Deus. Costuma dizer que «no covil do lobo não existem ateus», quer dizer, as experiências limite de Douglas Scope mostraram-lhe Deus real e o encontro de muitos com Deus. Mesmo aqueles que sempre admitiram nunca o (vir a) encontrar.
Depois de ruírem as seguranças humanas a quem recorreremos para que nos espante o escuro da noite e da morte, os fantasmas do desespero e da loucura; a quem pediremos que nos acenda a chama da esperança? Douglas Scope diz que a Deus.
A vida é para viver, para salvar, para se salvar de a perder pelo encontro com Deus. E tanta gente que não vive!...

Europa
Está em preparação a futura Carta da Europa, uma espécie de Constituição da União. Uma coisa assim exige muito estudo, muita colaboração e reflexão dos homens bons. De ambos os lados, de todos os lados. O assunto passou rapidamente pelos jornais e pelos écrans. Assim como veio, assim foi. Deve ser coisa de políticos – pensou-se e desleixou-se... –, e deixou-se ficar a coisa para os políticos.
Gerou-se, porém, um pequeno debate. Melhor, falou-se da pele de galinha gerada pela notícia segundo a qual, a futura Carta, deveria conter ou não uma referência às raízes cristãs da Europa. Já se vê que não é assunto para consensos. Uns que sim, outros que não. E a maioria chutou para canto ou passou ao lado. Uns argumentam que os americanos colocaram Deus na Constituição, e os outros responderam que O retiraram da vida. E se os americanos colocaram..., mas os americanos são também fonte de muitos erros. E é verdade.
O Caminho não é por aí. Não temos por que imitar ninguém. Mas a haver uma Carta da Europa por que não incluir nela Deus? Não precisa de parecer lá nenhum capítulo da Bíblia. Mas não é despropositado reconhecer que a união da Europa não é só económica ou política, e que nos unem – mesmo antes da economia e da política! – laços espirituais. Deve a futura Constituição europeia reconhecer os comuns fundamentos e raízes cristãs? Claro que sim. Não está em questão restaurar a Cristandade, trata-se apenas de reconhecer que uma árvore sem raízes morre, morre depressa.

Crime
No HermanSic de 8 de Dezembro – tal como já o fizera em telejornais passados – Carlos Cruz foi lavar-se para a televisão. Com todo o respeito digo que foi lavar-se. Carlos Cruz fora lançado à fogueira e ao enxovalho do diz-que-disse. E do meio da fogueira, cheio de lama, lamentou-se: «Eu não moralizo, também tenho os meus pecadilhos. Mas agora onde me vou refugiar. Eu não sou católico; a justiça falhou e a Igreja tem os seus casos...». Ó senhor Carlos Cruz, pois tem. Mas em vez de ir a um programa de televisão (mais eficaz, claro!) poderia ter ido a uma igreja. Olhe que as igrejas ainda são bons refúgios. Não duvide que são. E rematava: «Já não há ideias. Não há guias. Não há condutores». Não quero crer, mas olhe que quase concordo consigo: parecemos à deriva. E talvez tenha sido ela que provocou o seu assassinato mediático. Mas de quem é a culpa? Da Igreja ou da televisão?
Compreendo a sua preocupação em deixar um património moral e de bom nome às suas filhas. Quer entregar-lhes valores, projectos, crença no futuro. Mas também lhe entregará os seus pecadilhos, já reparou? Não se orgulhe deles, nem os lamente. São o que são. Também são património, são herança. Fôssemos todos homens bons, sem pecadilhos e casos e não existiram coisas como o mega-escândalo da Casa Pia!
(Estas notas foram escritas nos dias seguintes às primeiras denúncias públicas que atingiram o locutor Carlos Cruz. Entretanto, Carlos Cruz foi preso preventivamente na semana passada. Nada está provado, nada está julgado. E enquanto não for julgado e sentenciado como culpado Carlos Cruz é apenas réu. E como tal continua a ter direito ao seu bom nome. Até que se prove, se algo houver a provar, o contrário. E como qualquer réu é digno de presunção de inocência até que a sentença transite em julgado.)

1’ de sabedoria
O Mestre nunca se mostrava impressionado com o exibir de doutoramentos, mestrados e diplomas e mais diplomas... Simplesmente estudava as pessoas e não os seus diplomas. Por isso, um dia, alguém o ouviu dizer: «Se você tem ouvidos para ouvir o canto dum passarinho não precisa de lhe perguntar qual as suas credenciais, os mestres e a escola de música que ele frequentou»!

[8 de Fevereiro de 2003]

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Conventos
Há coisas que lemos e não registamos logo. Por estes dias lia eu um jornal diário, não sei qual; sei que um conferencista que creio estrangeiro dizia algo que hoje deu à praia da minha memória. Dizia mais ou menos assim: como na Idade Média precisamos de conventos para regressarmos ao lugar onde se lê. Hoje já não se lê. Hoje discute-se muito, mas muito pouco de substantivo. Sabe-se umas coisas, mas não se sabe reflectir.
Não sei se falava da nossa realidade, digo, da portuguesa, ou se, como agora se diz, falava desta realidade globalizada que é a vida deste pequeno globo azul. Sei, porém, que tem razão. São necessários remansos e oásis em que as horas passem sem passar, em que se possa entrar sem pressa para sair, em que se possa estar, em que nos possam(os) encontrar. Hão-de ser espaços austeros que não completamente despidos nem agressivos, capazes de dispensar o superficial e persuasivos. Espaços de advento e de encontro, espaços que deixem descansar os livros sobre os joelhos e dêem tempo para juntar as letras. Espaços de calma e revelação, de descoberta e projecção, sólidos contra toda a vertigem, solícitos para com as fomes de calma, de silêncio, de reflexão.
Faltam, estou de acordo, locais que nos ensinem a lermo(-no)s no silêncio.

Urna
André Lemaire sabe ler pedras. É uma arte que eu não sei. Quero dizer sabe decifrar inscrições antigas; em aramaico, suponho, será uma delas. Andava o nosso investigador de férias em Jerusalém e tropeçou numa urna (um ossário para se ser mais preciso). Tropeçou é uma maneira de dizer, cruzou-se, mostraram-lhe...
O ossário que ao que parece é do primeiro século da nossa era tinha uma inscrição que ainda ninguém lera (lera, mas não entendera). A inscrição dizia: «Tiago, filho de José, irmão de Jesus». Jesus, crê-se, seria o nazareno. O nosso.
Escreveu-se muito, falou-se muito. Mas que conclusões tira o Professor daqui?
  1. O Professor conclui que se encontrara a primeira prova física (tocável) extrabíblica da existência de Jesus (ora ali estava uma boa notícia...). Já existiam provas testemunhais, como os testemunhos de Flávio Josefo, mas isso são testemunhos e os testemunhos sempre podem ser manipuláveis, isto é, reescritos recopiados ou reinterpretados por fontes cristãs. E as pedras não...
  2. Conclui também que se Tiago era irmão de Jesus, então a Mãe de Jesus não teria sido Virgem.
Mais à frente o estudo do Professor Lemaire acaba dizendo que a sua prova não é cem por cento infalível. Em Jerusalém existiam muitos Tiagos, e entre tantos Tiagos algum poderia ter sido filho de um qualquer José e irmão de um qualquer Jesus. A isto há ainda que acrescentar que, por vezes, «irmão» queria dizer simplesmente «primo» ou «amigo». E pode ainda dizer-se que, mesmo que a inscrição seja verdadeira, isso poderia apenas confirmar o que dizem algumas tradições: José – esposo de Maria e pai putativo de Jesus – teria filhos doutro matrimónio!
Não sei onde esteja a verdade. Nem interessa. Do ponto de vista da fé a tangibilidade das coisas não acrescenta nada. A fé não se suporta em túmulos, graais, lençóis ou madeiros que só podem ser muletas, apenas muletas. Nunca são o caminho. São provas que não provam, embora a fé cristã, obvia e claramente, se sustente em Jesus verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Quer dizer, existiu mesmo, nasceu mesmo! Nasceu por obra e graça do Espírito Santo. Um dia o Espírito nos há-de dar a entender claramente tudo!

Crime
Andava o Crime do Padre Amaro esquecido até que um realizador mexicano o descobriu e filmou. No México onde foi realizado deu brado e escândalo. Aqui parece passar desapercebido. Não o li, não o vi e as referências que tenho são de outros. Inclusivé chegam por outros as palavras de Carlos Carrera, o realizador, afirmando que a Igreja não quer deixar-se governar por leis humanas. Lá terá as suas razões para dizer o que disse, mas também não percebo como pode querer que nos governem leis humanas quando a Igreja não é puramente humana. Percebo que Carrera queira fazer crítica social – como Eça fez –, não se compreende que afirme o que afirma... a não ser por desconhecimento. E também percebo que já não sendo católico sugira o que sugere. Mas assim como ao (já) não católico Carrera eu não sugiro ou recordo leis – a não ser as que nos são comuns –, como pode ele falar para aquilo a que (já) não pertence? Porém, já nem isso me escandaliza.

Anjo
Em Entre-os-Rios já lá está o monumento. Ainda não está inaugurado, mas já lá está.
Eu sempre achei que deveria haver memória da tragédia da Ponte Hintze Ribeiro, e um monumento é uma maneira de não deixar que a memória morra. (Eu teria deixado um pegão denunciador!, mas talvez não pudesse ser ou fosse demasiado ameaçador!). O monumento é um Anjo de doze metros de altura, feito de bronze e com um banho de ouro. Os autores – Henrique Coelho e Laureano Ribatua – dizem que o Anjo é o Anjo Gabriel e quer simbolizar a paz. Eu acho mais que deve ser o Anjo da Ponte.
O que a mim me surpreendeu nas imagens que vi foi a comoção do Anjo. O Anjo da Ponte tem uma lágrima ao canto do olho! É pequena, mas uma lágrima pequena é sempre uma lágrima. Significa isso que também o Céu chorou quando todos choramos por causa da tragédia de Entre-os-rios? Sim, creio que sim. Chorou e ainda chora. E com todos e mais que todos chorou o Anjo encarregado de fazer a ponte entre Deus e aqueles que morreram.
Ao ver as imagens da notícia não pude não lembrar-me que não andamos sós. Alguém – ensinavam-nos em pequenos – anda sempre connosco. É o nosso Anjo! E ensinaram-me a falar com Ele. Fala-se assim: Santo Anjo da minha companhia, guardai-me de noite e de dia. E também: Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, pois a ti me confiou a piedade divina; hoje e sempre me governa, rege, guarda e ilumina.
Alguém me há-de perguntar porque não guardou Ele os que se sepultaram no rio. Porém, algum dia, estou certo, perceberemos bem como bem os guardou, nunca os desamparou, nunca deles se ausentou. Nem naquela (aparente) hora má!

1’ de sabedoria
Um comerciante veio ver o Mestre num estado de grande desalento; e disse-lhe que, em frente à sua mercearia alguém inaugurara um enorme armazém que lhe viria a arruinar os negócios. Sua família possuía aquela loja há quase um século, e perdê-la seria para ele a ruína total – isto é mais que certo, dizia –, porque não tinha habilitações para mais, só sabia ser merceeiro!
O Mestre deu-lhe o seguinte conselho: – Se você tiver medo do seu rival vai ter-lhe ódio também, e o ódio, então, esse sim, vai ser a sua ruína!
-- Mas que hei-de fazer?, perguntou aflito e desolado o pobre do merceeiro.
-- Cada manhã, disse o Mestre, saia para a rua e, da calçada, abençoe a sua loja; e depois volte-se para o armazém e abençoe-o também.
-- E como hei-de abençoar quem me quer mal, perguntou o homem aterrorizado?
-- Toda a bênção que lhe desejar há-de recair sobre você, ensinou o Mestre!

[19 de Novembro de 2002]