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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Desaparecida

Encontrei algures uma notícia e fiquei olhar para ela. Como quem vê um boi a olhar para um palácio. Um boi não sabe distinguir uma janela duma porta, o frontispício do telhado, uma estátua duma floreira. Para o boi aquilo é um palácio ou lá o que é, mas como não se come não é nada. Fiquei mais ou menos assim quando li uma notícia sobre o roubo duma ponte. Uma notícia assim não parece o que é, e deixa-nos incrédulos. Eu fiquei. Olhava para as letras e via-as juntas e ordenadas, formavam um texto que era uma notícia, ou brincadeira. Dei por mim a pensar: é daquelas notícias papa-tolos, bem escritas mas sem sentido! Seja. Mas seja o que seja vou trazê-la para aqui.
Os conteúdos eram estes: Na República Checa, entre os inícios de Dezembro e meados de Janeiro deste ano roubaram uma ponte. Era uma ponte de aço, ali disposta para unir duas cidades. Não era um viaduto qualquer, era mesmo uma ponte e pesava 4 toneladas. (Um carro pesa uma e meia!)
As pontes são para mim das construções mais interessantes. São como as vitórias, juntam o que andava separado, vencem abismos, unem as margens que porque o são andam sempre desavindas, fazem comunhão, fortalecem comunidades. São causa de alegria e de júbilo, facilitam a vida e antecipam os encontros. É porque provocam união que as pontes me seduzem. Para além de me ser incompreensível como foi possível roubar uma ponte e ficar mais de um mês sem saber que fora roubada, passo a enumerar os meus outros espantos por causa desta notícia: Não foi o David Coperfield porque ele encena ilusões, não muda a substância da realidade!; Como é que duas cidades ficaram tanto tempo sem se aperceberem que estavam separadas?; Era mesmo uma ponte, ponte?, uma ponte que fazia falta? Era mesmo uma ponte que servia para o que serve uma ponte: unir?; O mais certo é ter sorrateiramente acabado na casa dum socateiro qualquer: mas poderá uma ponte de um só homem ser verdadeiramente uma ponte?

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Um sorvo

Era um encontro de jovens, em Agosto, em Segóvia, no convento de S. João da Cruz. Ali os dias são quentíssimos, a paisagem é de restolho ressequido; os corvos grasnam o dia todo por cima da Igreja da Senhora de la Fuencisla. São tantos e tão insistentes que quando se calam, nos sentimos melhor. Em chegada a noite também ficamos melhor, porque a temperatura amaina.
Nesse dia de que quero falar saímos enquanto o sol era meigo. Calcorreamos caminhos de pó por entre restos de searas e de campos enormes. Parámos bem antes do meio-dia, bem antes do sol queimar. Parámos sob as únicas árvores que se viam por ali. Mas antes de merecermos almoçar, reunimo-nos à volta dos textos de S. João da Cruz. E como é diferente lê-los naquela terra quase só terra, quase só céu!
Passámos ali a tarde. Chegámos por fim a casa cansados e suados, com os corpos a suspirar por um banho. Antes da ceia, porém, estava prevista uma hora de oração. No meio da frescura da capela depuseram uma vela no chão e uma tina de água.
Quero lembrar que entre nós havia um catalão, de 17 anos, que ninguém sabia ao que viera. Estava ali tão deslocado como um peixe a apanhar banhos de sol. Não sabia nada daquilo. Não sabia nem rezar nem o que era um convento nem porque tínhamos de nos juntar a horas certas e fazer tudo junto. O nome, julgo, era Rufo. Apesar de destoar Rufo era simpático, embora quase só falasse de bebedeiras de vinho!
Foi também à oração, que começou e foi decorrendo junto ao Poço de Jacob, onde Jesus se encontrou com a Samaritana e lhe pediu de beber; onde Jesus foi remoçando o coração ressequido daquela mulher, acabando ela a pedir-Lhe: — Dá-me, Senhor, dessa água!
Era assim entre cânticos, o Evangelho e os apelos da Santa Madre, que ia decorrendo a oração. Ali, se traçava o itinerário de fé que cada um de nós deve percorrer: Jesus aproxima-se. Depois é reconhecido e acolhido como a única água que pode matar a nossa sede.
A certa altura, foi cada um de nós até junto da água e só tinha que fazer aquilo que quisesse fazer: mirar, tocar, santiguar-se... Havia um cântico: — Dá-me, Senhor, dessa água. O cântico ia correndo e a fila andando, e à medida que cada um se aproximava da água cumpria o ritual. E regressava ao seu lugar.
Rufo foi o último. Todos vimos como se tardou diante da água. E nós cantando. Ficou ali, imóvel, impressionado, resoluto. Depois, ajoelhou e deu um grande sorvo antes de lavar a cara. O cântico parou mas ali deve ter nascido um santo, pois no restante do encontro o rapaz já não foi mais igual!
(Ignoro o que posteriormente se passou com a vida de Rufo; se ficou a gostar mais de vinho ou de água. Mas o que é certo é que se naquela tarde não foi tocado pela sede de Deus, fomo-lo nós perante o seu gesto tão inesperado.)