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sexta-feira, 27 de julho de 2007

Teresa

Quando o filme começou a ser realizado ou quando parte dele foi filmado em Tomar, recebi por email alguma informação negativa. Era sensibilização de amigos desconhecidos e zelosos convidando-me a boicotar o filme. Na perspectiva desses meus zelosos amigos, aquele era um filme que não devia ser feito, e muito menos visto. Achavam por isso, que eu deveria denunciar tal injúria e ofensa à fé e à tradição carmelitana.
No meu caso a publicidade negativa funcionou. Andei perscrutando os dias em que ele apareceria por perto. Quando apareceu pensei logo em ir vê-lo num cinema perto de mim mas não deu. Fui vê-lo longe, antes que fosse tarde ou já não pudesse vê-lo.
O filme chama-se Teresa, o corpo de Cristo. Confesso que não percebi o título, a não ser que nele se leia algo da teologia paulina segundo a qual a Igreja — todos os seus membros e também Teresa —, são corpo de Cristo. Pode ser que seja isso.
Na tarde em que fui vê-lo só estava eu na sala de 104 cadeiras! Pouco depois chegou um idoso e logo atrás um par de namorados. Éramos 4 a vê-lo!
Que retenho eu do filme?

  1. Não me pareceu um daqueles filmes clássicos. Mas enquadra bem o tempo, o espírito da Igreja espanhola e da sociedade abulense. Depois do que vi, parece-me que os espanhóis não têm medo de recordar e trazer para o presente a memória dos seus heróis. Neste caso, um religioso. A nossa Santa Madre Teresa.
  2. O filme é daqueles que se centra na personagem. Ali conta Teresa e os outros que contam só contam para definir a espessura humana e espiritual de Teresa. Jamais ali se vê a epopeia fundacional da Santa. Mas vêem-se as rochas sólidas donde se erguem as colunas que sustentarão o edifício. Assim, regozijo-me pelo filme evidenciar claramente o seu amor a Jesus Cristo e à Igreja. Só um amor assim de grande justifica que se tenha lançado a uma empresa tão enormemente desconfortável e de tantos riscos (e não só pessoais). E regozijo-me por ali ter visto o amor às suas irmãs e a uma vida simples e fraterna. Sinceramente não vi ali uma Teresa sedutora (que eu guardo na cabeça) que arrasta quase todo um convento de 200 freiras e outras para a fundação da nova Ordem. Mas vi uma mulher centrada em Cristo e senhora duma determinada determinação, capaz de quebrar antes de torcer sempre que se sabia no caminho da verdade. E regozijo-me pela teia das dúvidas que assaltavam o seu coração, que eram apenas os sintomas de querer fazer apenas o que deveria fazer: a vontade de Deus, para estar ao serviço de Deus. Essa foi a parte que eu mais gostei: Teresa querendo acertar, simplesmente acertar o caminho que Deus lhe propunha. Sem mais.
  3. Retenho aquela sociedade amordaçada pelo medo. E os que mais presos estavam eram os que primeiro são convidados a libertar: a Igreja, os sacerdotes, as Ordens religiosas. E a contrastar com todo aquele medo «havia um coração onde reinava o amor». Era o de Teresa. Concerteza haveria outros, mas o filme era dela. Não é que ela não tivesse medo pois o tinha, mas o amor suplantava tudo. Até o medo. Por isso, de futuro rezarei assim: onde houver medo, Senhor, fazei que eu semeie o amor.
  4. E retenho a consciência cada vez mais forte de que não somos nós que nos fazemos. Mas que os outros, os irmãos e irmãs, o contexto social e religioso, os acontecimentos e a Graça, as circunstâncias e o eterno é que nos constroem, nos moldam, nos arrancam do chão. Somos filhos antes de sermos pais. Somos semente antes de sermos semeadores. E ai das sementes cujo terreno em que são lançadas não é fofo, mas hostil; não é fresco, mas fora de prazo; não é arejado, mas bafiento! É desse negro humús espiritual e social que emerge a figura fantástica de Teresa. Se semearam muitos espinhos e muita erva daninha à volta do campo donde brotou, também por perto cresceram amigos que a cuidaram, mãos que a abraçaram, corações que com ela se enlevaram, esperanças que com ela se esperançaram, luzes claras que a iluminaram, livros que a leram.

A meio do filme a rapariga saiu e voltou 45 minutos depois. O velho ressonou e eu recebi uma chamada informando-me dum funeral. Quando o sino de São José informou Ávila da nova fundação as luzes acenderam-se. E subiram os créditos. Só então reparei que a rapariga também tinha adormecido e o rapaz não a queria acordar. Aproximei-me e perguntei: «Desculpe a intromissão, mas por que vieram ver este filme?». «Porque era um filme!», respondeu-me o rapaz. Já não me atrevi a perguntar ao idoso. Foi ele que me veio informar: «Porque sou religioso e o filme fala de religião». Pois. Éramos poucos e pariu la abuela!
Ainda assim, houvesse mais heróis de hoje com coragem para rememorar os do passado e não andaríamos tão ensonados nem tão perdidos.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Duas pessoas

Eu não conheço Beth Ditto. Em boa verdade nunca me foi apresentada, como diria o outro. É cantora. Creio que as canções que canta não frequentam a rádio por onde por vezes me perco. E defende valores que não são os meus, com os quais eu não sintonizo. É por isso que conhecê-la ou não (ou à sua música) me é igual. O mesmo será para ela.
Mas, pronto. A imprensa fala dela e eu sei que a senhora existe, que é uma mulher ácida, que, dir-se-ia, é daquelas que morde a mão que lhe dá o pão. É isso. É uma mulher tão crítica que não se inibe de criticar o seu público, aquele que lhe compra os discos e vai aos seus concertos. Ela é uma mulher que sabe quem é (e sempre o soube). Ela não muda, o mundo à sua volta é que muda ou tem de mudar. Por isso quando actua em concertos está tão segura de si que não se preocupem que não gostem da sua música e da sua performance. É descarada a mulher: «Não me incomoda assim tanto que as pessoas pareçam entediadas. Toco para as duas pessoas na multidão que estão a divertir-se e a prestar atenção.»
Ora aí está uma mulher de convicções. Se houver duas pessoas que gostem, ela canta para elas. O resto se a desprezar, será desprezado por ela.
Viremos isto como me convém. Pergunto-me quantos de nós, na nossa banda, temos disponibilidade e carinho pelo nosso público para tocar para esses dois que permanecem atentos. Confesso que desanimo face ao tédio, ao desinteresse, à falta de garra dos meus públicos. E em boa verdade, costume ter mais que dois ou três animados e interessados.
Se alguma vez Miss Ditto me for apresentada eu vou agradecer-lhe esta lição de vida. Afinal de contas eu tenho melhor mensagem que a dela, mas por vezes não tenho a garra e o convencimento dela.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Nadir

O senhor Nadir tem quase 90 anos e um cara de menino, de menino traquina, apesar da barbinha que ostenta. Ele que me perdoe se a afirmação não é um elogio. Mas aqueles olhitos e a cara miúda falam-me dum catraio extasiado com uma tarde de Verão, sem escola e passeada (ou saltada, ou saltibancada) ao ar livre.
É a segunda ou terceira vez que ouço falar dele. A primeira foi num documentário do Canal 2 em que vi uma tela muito enigmática e geométrica que afinal, depois de lhe ser sobreposta uma fotografia, mais não era que uma praça de Lisboa.
Fiquei curioso com o homem.
Agora está na Galeria do Jornal de Notícias e talvez eu passe por lá. Talvez para decifrar a sua pintura tivesse que conhecer a sua geografia e a peregrinação da sua vida. Mas irei só para ver pedaços de cidades que o não são, que são simples telas. Embora mais que telas pintadas, claro.
No JN de 29 de Junho vinha uma entrevista sua. Retiro duas coisas: uma, o nome Nadir foi sugerido ao pai — que ia a caminho do Registo Civil; outros tempos! Outros tempos! — por um amigo cigano. Duas, a sua pintura não é tanto de inspiração mas fruto do trabalho persistente, aturado, sujo, reclamado, insistido, cuidado. Nã, nada disso. Os pintores não pintam de smoking. «Rebolam muito pelo chão», até deveriam ter um espaço «onde poderiam ir agonizando» à espera de melhores dias, de melhores soluções. Diz ele.
O homem leva esta coisa do trabalho tão a peito que, considera, jamais um quadro está terminado.
Eu estou mesmo a vê-lo com formigas nos dedos, quando vê o quadro antigo seu. A vê-lo cheio de imperfeições a exigirem um retoque, uma melhoria, um aperfeiçoamento. Sim, estou mesmo a ver o ciganito — que me perdoe o mestre! — reguila, atrevido, irrequieto, entrando pela casa dum amigo e logo preso a um quadro seu. E a dizer: «Humm! Estas linhas deveriam ser prolongadas, estes contrastes avivados». E, então, fazendo juz à viveza do raciocínio e do olhar juvenil, ele rapa da algibeira um pincel sempre pronto e conclui por ora — só por ora, claro! — a tela inacabada. Que inacabada fica.
Espantosa ideia a do mestre inacabado. Como deve sofrer só por que tem que vender coisas inacabadas, que lhe fogem do alcance e do remate final.
Sim. Pego agora na ideia e viro-a para mim. E dou comigo a ler-me os pensamentos. É isto mesmo que somos, telas inacabadas pelo Criador. Histórias sem fim à vista. Histórias com fim previsto e escrito, mas prolongando-se sempre para mais além do além que nos tocou viver.
É bem verdade. Somos inacabados, nada é ainda perfeito em nós. Ai de nós se a Graça do Mestre Ciganito — perdoe-se-me a ousadia, meu Deus! — não nos for trabalhando, completando, aperfeiçoando. Sim, meu Deus. É bem verdade. As tuas mãos não param desde o início da criação. Não param de me moldar, de moldar o meu barro tosco, o meu barro seco, áspero, resistente, bruto.
Visita-me, Senhor. Entra, por favor em minha casa. Contempla a minha vida, vê o quadro das minhas imperfeições e inacabamentos, repara como estropiei o que me entregaste. Traz um pouco de água que amacie o meu barro, que inunde as minhas resistências, que afogue os meus defeitos. Que afague as minhas feridas. Afaga-me com os teus dedos, completa-me um pouco mais.
Não te canses, Senhor.